Por Fernanda Rosário e Nadine Nascimento, em Alma Preta Jornalismo.
Aproximadamente 83% dos municípios brasileiros com barragens de mineração em situação de alerta ou de emergência têm uma população majoritariamente negra. Os dados fazem parte de um levantamento da Alma Preta, que cruzou informações disponibilizadas pela Agência Nacional de Mineração (ANM) e os dados de cor e raça do último Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Para a geógrafa Fernanda Pinheiro da Silva, doutoranda em planejamento territorial pela UFABC, a localização dessas barragens de mineração, além da falta de segurança, revelam as engrenagens do racismo.
“Falar sobre racismo ambiental é falar sobre a exposição desproporcional de pessoas negras e indígenas em situação de risco e poluição de variados tipos. Esse dado apresentado reforça a importância de observar que o racismo opera como uma engrenagem central dos riscos que são produzidos pela mineração em larga escala”, comenta a geógrafa.
De acordo com o levantamento da reportagem, até o dia 12 de abril deste ano, havia 93 barragens ameaçadas, dentro de 35 municípios e em 12 estados. Do total de municípios, 29 (82,86%) são de população majoritariamente negra.
Crédito: Nathalia de Souza/ Alma Preta Jornalismo
Todas as barragens ameaçadas estão inseridas na Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB). A PNSB foi estabelecida pela Lei Nº 12.334/2010 com o objetivo de regulamentar os padrões de segurança de barragens e reduzir acidentes ou desastres.
Segundo o último relatório mensal da ANM, com panorama da situação das barragens de mineração no país, até o fim de março, havia 922 barragens de mineração cadastradas no Sistema Integrado de Gestão de Segurança de Barragens de Mineração (SIGBM), das quais 457 estavam enquadradas na PNSB.
Caso a barragem apresente alguma característica predefinida pela PNSB, como conter resíduos perigosos, ela passa a integrar a política. Assim, são definidas por agentes fiscalizadores sua categoria de risco (CRI) e seu dano potencial associado (DPA). O CRI é classificado de acordo com aspectos técnicos, como estado de conservação e idade do empreendimento da barragem, já o DPA é definido pelo potencial de perdas de vidas humanas, impactos sociais, econômicos e ambientais.
Além disso, as barragens monitoradas e inseridas na PNSB, podem entrar em situação de alerta ou de emergência segundo uma classificação do nível 1 ao 3. O nível de alerta é uma anomalia que não implica risco imediato, mas que deve ser monitorada e controlada. O primeiro nível de emergência envolve problemas na entrega da Declaração de Estabilidade (DCE) da barragem. O nível 2 envolve uma anomalia não controlada, já o nível 3 é o alerta de ruptura inevitável ou ocorrendo.
“Sempre que a barragem entra em algum nível de emergência, o empreendedor deve parar de enviar mais rejeitos, e manter a infraestrutura de monitoramento e conservação”, explica Tchenna Maso, pesquisadora e doutoranda em Direitos Humanos e Democracia na Universidade Federal do Paraná.
A Resolução ANM n° 95/2022, publicada em fevereiro do ano passado, explica os critérios para as barragens entrarem em situação de alerta e de emergência. Antes, essa classificação era de responsabilidade do empreendedor. Com a nova resolução, outros critérios foram incorporados, o que pode implicar em situação de emergência independente da declaração da mineradora.
Além disso, quando a emergência for de nível 2, o empreendedor é obrigado a se articular com a Defesa Civil para realizar a evacuação preventiva da população inserida na Zona de Autossalvamento (ZAS) – área próxima à barragem que pode ser afetada pelo seu rompimento em até 30 minutos.
Desalojados e em alerta
O levantamento da reportagem identificou que, até 12 de abril deste ano, os estados com mais barragens em situação de alerta ou de emergência foram Minas Gerais (com 56 barragens), Mato Grosso (com 12) e Pará (com 7).
Há três municípios atualmente com barragens no nível máximo de emergência. Todas no estado de Minas Gerais. Entre elas, estão as da mineradora Vale: Forquilha III, em Ouro Preto, e Sul Superior, em Barão de Cocais. No município de Itatiaiuçu, há cerca de 76 km de Belo Horizonte, também está a barragem de rejeitos da empresa ArcelorMittal em nível de emergência 3.
Crédito: Nathalia de Souza/ Alma Preta Jornalismo
Pouco depois do desastre da mineração em janeiro de 2019 em Brumadinho, a barragem de Serra Azul, pertencente à empresa ArcelorMittal, precisou acionar o seu Plano de Ação de Emergência para Barragens de Mineração (PAEBM) no dia 8 de fevereiro de 2019 quando estava em nível 2 de emergência. Três comunidades de Itatiaiuçu foram afetadas: Pinheiros, Lagoa das Flores e Vieiras.
Segundo informações da ANM, a barragem de rejeitos de minério de ferro da ArcelorMittal, desativada em 2012, está classificada em uma categoria alta de dano potencial associado, devido aos riscos de um impacto ambiental significativo e à concentração de residências, propriedades e infraestruturas próximas à barragem. Em fevereiro de 2022, a barragem de Serra Azul passou para o nível 3 de emergência.
Ao todo, 90 famílias tiveram que sair de suas casas desde o acionamento do PAEBM e, até hoje, não puderam retornar sob o risco de rompimento da barragem. Segundo o Censo de 2010, cerca de 55% dos moradores do município são pretos e pardos.
No dia do acionamento do plano de emergência da mineradora, a empreendedora Shirley de Souza Ferreira, de 47 anos, conta que estava em um sítio na comunidade de Pinheiros, onde trabalhava como faxineira e o namorado era inquilino. Ela não sabia que havia barragem de mineração no município.
Segundo a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), que acompanha os atingidos do município, no dia do acionamento, a retirada das famílias aconteceu com a passagem de porta em porta de agentes da defesa civil, bombeiros, polícia militar e da própria mineradora. Porém, Shirley relata que, por volta das 2h da madrugada de 8 de fevereiro, recebeu uma ligação da filha que dizia para ela sair do local em que estava, porque a barragem da Arcelor estava para romper.
“Foi uma surpresa. Eu não ouvi sirene da mineradora. Ninguém me chamou aqui em casa. Assim como no meu caso, tiveram várias pessoas que a Defesa Civil não alcançou para retirar das casas, por serem áreas de difícil acesso e por também ser de madrugada”.
Shirley e a família na época do acionamento do plano de segurança | Crédito: Reprodução/ Aedas
“Não desceu lama, mas o jeito que a gente foi tirado de casa foi desesperador, até entender o que estava acontecendo”, complementa Shirley.
O pedreiro José Roberto Pereira Cândido, de 44 anos, da comunidade de Vieiras em Itatiaiuçu, conta que não precisou sair da sua propriedade, que não estava na rota da lama do possível rompimento, mas viu cenas de muito desespero na madrugada do acionamento do plano de segurança. Segundo ele, as famílias que moravam próximas ao rio na comunidade precisaram ser deslocadas.
“Essa situação afetou bastante a gente. Na época, eu estava trabalhando dentro das ZAS com um colega meu reformando casa. Eu tive que me deslocar para outro serviço, em outro município, para conseguir trabalhar”, relata o pedreiro.
José Roberto também afirma que até hoje existem áreas de circulação restrita na comunidade e, caso a barragem realmente se rompa, as famílias de Vieira ficarão ilhadas com a interdição da única saída, que pode ser tomada pela lama.
José Roberto, de Itatiaiuçu | Crédito: Arquivo pessoal
Depois da situação, a Assessoria Técnica Independente da Aedas chegou a cadastrar 665 núcleos familiares que se autodeclaram atingidos pela situação da barragem em Itatiaiuçu, dentro e fora da Zona de Autossalvamento. No entanto, cerca de 400 núcleos familiares atingidos ainda aguardam serem cadastrados para levantamento dos danos e participação das negociações de indenização. Cerca de 64% das pessoas cadastradas se autodeclaram negras(os).
Ainda de acordo com a organização, em março, a empresa informou que a descaracterização da barragem demoraria mais 10 anos para acontecer. O processo estabiliza a barragem, além de fazer drenagem e plantio de vegetação sobre a estrutura.
Procurada pela reportagem, a mineradora ArcelorMittal informou que, desde o acionamento preventivo do Plano de Ação de Emergência para Barragens de Mineração (PAEBM), a empresa ampara as famílias realocadas, prioriza a mitigação dos impactos nas comunidades e busca a reparação integral dos danos individuais e coletivos causados. A ArcelorMittal também relatou que o PAEBM da Mina de Serra Azul sempre foi de amplo conhecimento das autoridades e organismos públicos competentes. Confira a nota da empresa na íntegra.
Imagem da barragem de rejeitos da ArcelorMittal disponibilizada pela ANM | Crédito: 2023 CNES/ Airbus, Maxar Technologies (reprodução Google Maps)
Já a Prefeitura de Itatiaiuçu informa que a Defesa Civil Municipal esteve acompanhando as ações de modo a garantir a segurança dos moradores locais, bem como acompanhou as medidas aplicadas pelo empreendedor e órgãos de fiscalização no tocante ao acolhimento dos munícipes e demais atingidos. Além disso, desde o acionamento, a prefeitura informa estar assistindo aos atingidos. Confira na íntegra!
Sob a sombra de Mariana e Brumadinho
O levantamento da reportagem também identificou que, até 12 de abril deste ano, os municípios com mais barragens ameaçadas foram Ouro Preto/MG (com 11 barragens), Nova Lima/MG (com 10) e Ariquemes/RO (com 5). Os municípios palco dos maiores desastres envolvendo rompimento de barragem no Brasil – Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais – têm, cada um, 7 barragens ameaçadas. Sendo que, em Mariana, todas são das mesmas empresas envolvidas nos desastres de 2015 e de 2019: Vale e Samarco.
Crédito: Nathalia de Souza/ Alma Preta Jornalismo
O município de Arraias, no Tocantins, é o que apresenta a maior porcentagem de população preta e parda dentre os municípios com barragem ameaçada. Cerca de 88% da população da região é negra.
De acordo com o Sistema Integrado de Gestão de Segurança de Barragens de Mineração – SIGBM Público -, disponibilizado pela Agência Nacional de Mineração, no município tocantinense há uma barragem de rejeitos em situação de alerta.
Trata-se de uma barragem da empresa Itafos Arraias Mineração e Fertilizantes S.A., inativa desde 2019. Segundo as informações disponibilizadas pela Agência Nacional de Mineração sobre a barragem, ela possui a categoria de risco baixo e o dano potencial associado alto, já que pode afetar vidas humanas e causar impacto ambiental significativo.
Procurada pela reportagem, a empresa Itafos negou que as barragens se encontrem em situação de alerta ou representem risco de rompimento. Segundo eles, há um monitoramento 24 horas realizado por especialistas e todas as exigências da ANM são cumpridas dentro do prazo. Além disso, afirmam que a estabilidade do barramento está comprovada através dos relatórios emitidos à ANM e que o plano de emergência da barragem é amplamente divulgado por meio de mídias locais, digitais, físicas e impressas. Confira o posicionamento da empresa na íntegra.
Imagem da barragem de rejeitos da Itafos disponibilizada pela ANM | Crédito: 2023 CNES/ Airbus, Maxar Technologies (reprodução Google Maps)
A Alma Preta também entrou em contato com a Prefeitura de Arraias que informou que o órgão recebeu o PAEBM da empresa em 25 de junho de 2022 e a previsão é de receber o novo plano atualizado ainda este mês.
“No município não temos Defesa Civil, o acompanhamento é feito pela própria prefeitura de acordo com a demanda. A barragem da empresa fica na zona rural e o acesso só é permitido com autorização, porém a empresa realiza simulados de emergência com a população próxima da barragem, com participação dos órgãos de segurança das cidades de Arraias e Campos Belos/GO. As áreas que podem ser atingidas estão sinalizadas com placas indicativas”, complementa.
Ainda de acordo com a Prefeitura de Arraias, a Declaração de Condição de Estabilidade da barragem da empresa foi atestada. Confira as respostas na íntegra!
Sinalização de área de risco em Arraias/TO | Crédito: Prefeitura de Arraias
Em relação às barragens que se encontram em situação de alerta ou de emergência nos municípios de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, a empresa Vale comentou que tem buscado avançar continuamente nas condições de segurança das suas barragens e, desde 2019, tem promovido uma mudança na gestão de suas estruturas de disposição de rejeitos. A previsão da Vale é não ter nenhuma barragem em condição crítica de segurança (nível 3 de emergência) até 2025.
Segundo a Vale, as duas barragens da empresa atualmente em nível de emergência 3 (Forquilha III e Sul Superior) estão inativas, em processo de descaracterização e são monitoradas 24 horas por dia. Além disso, explicam que as duas estruturas têm suas respectivas estruturas de contenção que são capazes de conter os rejeitos em caso de emergência.
Já a Samarco, informou que todas as suas estruturas geotécnicas são monitoradas constantemente, acompanhadas por auditorias independentes e possuem Declaração de Condição de Estabilidade. Confira os posicionamentos da Vale e da Samarco na íntegra.
A Prefeitura de Ouro Preto, município com mais barragens ameaçadas, enviou um posicionamento informando que realiza o constante acompanhamento das barragens de mineração através de vistorias com sua equipe técnica e na interlocução com as comunidades atingidas e órgãos fiscalizadores. Também disseram que todas as barragens no município possuem plano de ação de emergência e realizam exercícios simulados com população próxima à barragem. Confira todas as respostas do órgão!
Plano de segurança compartilhado com a população
De acordo com Francisco Kelvim, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), uma das principais insuficiências hoje encontradas na Política Nacional de Segurança de Barragens é a falta de informação suficiente para as populações próximas sobre os riscos.
O coordenador nacional do MAB também comenta que a política deixa a cargo do empreendedor fazer o processo de plano de segurança de suas barragens e o plano de evacuação, o que, segundo ele, geralmente não é comunicado efetivamente para a população. De acordo com o levantamento da reportagem, segundo dados disponibilizados pela ANM, 14 das 93 barragens ameaçadas até 12 de abril deste ano não tinham o Plano de Ação de Emergência produzido, mesmo quando exigido pelo órgão fiscalizador.
Larissa Vieira, advogada popular do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular, explica que o Plano de Ação de Emergência para Barragens de Mineração (PAEBM) é obrigatório e deve chegar até às pessoas que possam ser impactadas, conforme o artigo 12 da Política Nacional de Segurança de Barragem. A lei prevê programas de treinamento e divulgação para os envolvidos e para as comunidades potencialmente afetadas, com a realização de exercícios simulados periódicos.
“Porém, é importante destacar que na maioria das vezes esta medida não é suficiente. A maior parte das comunidades com grande potencial de risco somente fica mais apreensiva e amedrontada diante da elaboração destes simulados. O ideal é sempre fazer o diálogo comunitário e garantir os direitos, inclusive o direito ao reassentamento para um local longe do empreendimento e da barragem quando esta for a vontade da comunidade”, complementa a advogada popular.
Em um contexto de mudanças climáticas, Francisco Kelvim complementa que os eventos adversos, como as fortes chuvas, se somam às preocupações com as barragens. Segundo ele, grande parte desses empreendimentos são antigos e foram construídos em um momento climático diferente.
“A tendência é desses problemas de segurança nas barragens se multiplicarem. No Brasil, as mudanças climáticas vão atingir uma parcela muito grande da população, mas a maioria dessas pessoas que não terão condições de se adaptar estarão em regiões mais pobres, com boa parte da população negra. Assim, a questão da segurança de barragens no Brasil afetam desproporcionalmente os mais pobres também”, explica.