Por Murilo Pajolla
Em 2022, 500 trabalhadores foram resgatados em condição análoga à escravidão pela Auditoria Fiscal do Trabalho. Do total, 84% de autodeclararam negros ou pardos e 57% nasceram no Nordeste.
A prevalência de negros e pardos não é casual, na avaliação do auditor fiscal do trabalho Humberto Monteiro Camazi, coordenador do Projeto de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo da Superintendência Regional do Trabalho de Minas Gerais.
“Faltam políticas públicas para atenuar os 350 anos de escravização legalizada. O que faz com que essas pessoas, ainda que juridicamente livres, não exerçam essa liberdade no sentido amplo”, afirma.
Neste ano, a maioria dos resgatados trabalhava no cultivo de cana-de-açúcar: 299 pessoas. Em seguida, as atividades com maior prevalência dessas condições são a produção de carvão vegetal (54), o cultivo de alho (25) e a criação de bovinos para corte (23).
O estado onde ocorreram mais ações de combate à prática foi Minas Gerais. Foram fiscalizados 22 empresários que mantinham 368 trabalhadores escravizados.
Goiás e Mato Grosso do Sul vêm na sequência, com 7 e 3 ações fiscais, respectivamente. Em número de trabalhadores vítimas, Goiás ficou em segundo lugar, com 29 pessoas, seguido por Mato Grosso do Sul, com 22.
Trabalhador vai da fome à escravidão
A maioria das vítimas é recrutada em cidades pobres do interior, principalmente, do Maranhão, Piauí e Pernambuco, onde faltam comida, trabalho, saúde e educação.
“Enquanto a fiscalização não for compatibilizada com ações preventivas e de melhoria de vida desses trabalhadores, a gente não vai conseguir grandes avanços”, diz o auditor.
Sem perspectivas, as vítimas são atraídas por promessas falsas de registro em carteira, boas condições de trabalho e salário justo.
“Para eles, a fome ainda é um fantasma. O trabalho está estritamente relacionado à sobrevivência, sustentar família e esposa. Ainda que ele tenha ciência de que está assumindo um risco de ser submetido a esse tipo de atividade degradante”, afirma Camazi.
Os dados divulgados hoje (13) revelam mais sobre as pessoas resgatadas: 95% são homens; 31% têm entre 30 e 39 anos; 49% residem na região Nordeste; 57%; 13% são brancos e 3% indígenas.
A baixa escolaridade também predomina: do total, 23% declararam possuir até o 5º ano incompleto; 17% tinham do 6º ao 9º ano incompletos; e 6% eram analfabetos.
De janeiro até hoje, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), coordenado pela Auditoria Fiscal do Trabalho, realizou 61 ações fiscais, e em 38 (62%) foi caracterizado trabalhado análogo à escravidão.
O “Carandiru” do canavial escravocrata
Das 299 pessoas resgatadas do plantio de cana, 273 atuavam em fazendas arrendadas por uma gigante mineira do agronegócio, a WD Agroindustrial, em João Pinheiro (MG).
Foi a maior operação de resgate de trabalhadores no Brasil desde 2015 e o 16º maior já registrado nos últimos 27 anos.
A maioria das vítimas estava vinculada a um sistema irregular de terceirização, que envolvia duas empresas que intermediavam a mão de obra ilegalmente. 23 vítimas eram totalmente informais, sem registro em carteira de trabalho com a Usina ou com as empresas intermediadoras.
Eles não tinham nenhum equipamento de proteção individual, nem acesso a materiais de primeiros socorros e sequer instalações sanitárias disponíveis. Viviam em alojamentos superlotados, insalubres, com fornecimento de água inadequado e sem condições mínimas de conforto e de saúde.
No interior de um dos dormitórios, onde viviam quatro empregados, havia um fogareiro com botijão de gás. Em função das condições degradantes, outro local foi apelidado pelos trabalhadores de “Carandiru”, em referência à Casa de Detenção onde ocorreu o massacre de 1992.
Quando noticiou a operação, o Brasil de Fato fez contatos via telefone e e-mail com a WD Agroindustrial, mas não teve resposta. Caso a empresa mande um posicionamento, o texto será atualizado.
Plantio manual é mais lucrativo
O aumento de casos de escravidão moderna no plantio de cana de açúcar em Minas Gerais tem espantado os auditores.
“Isso pelo volume dos trabalhadores envolvidos e pela fragilidade das condições socioeconômicas dessas pessoas, a maioria oriunda das cidades mais pobres do Maranhão. E também pelos mecanismos engendrados pelas usinas para se desvencilhar totalmente da responsabilidade por essas pessoas”, diz Camazi.
“Isso não acontece em uma usina ou outra. Temos identificado que é um problema generalizado. O trabalho escravo na usina é um câncer em metástase”, diz.
A indústria sucroalcooleira é uma atividade econômica organizada, extremamente lucrativa, dominada por poucas empresários de grande porte. “Eles têm um poder de mercado muito grande, seus produtos tiveram uma acentuada valorização nos últimos anos”.
A lucratividade, no entanto, não se converteu em melhorias nas condições de trabalho de quem está na base da cadeia produtiva. “Muito pelo contrário, o que a gente está percebendo é um recrudescimento da situação. O retorno da mão de obra manual para plantar cana de açúcar”, atesta.
O plantio da cana envolve tarefas sazonais e extremamente penosas, para as quais as usinas e produtores não conseguem atrair mão de obra no volume necessário.
Para esses empresários, a solução mais conveniente é recrutar trabalhadores negros nas regiões mais pobres do Nordeste, cuja situação os empurra para a situação de escravidão moderna.
Mas por que não mecanizar o processo? O plantio manual tem condições de ser muito mais detalhado, valorizando o produto final e aumentando a produtividade do solo.
No divisão do trabalho, há os cortadores de mudas; os que carregam as mudas nos caminhões; e os responsáveis por cada uma das etapas do plantio.
“Dessa forma o teor de sucralose é maior, e a área cultivada por hectare também. Então houve um estímulo para a retomada do plantio manual, o que infelizmente não foi feito com respeito aos direitos elementares desses trabalhadores”, explica.
Terceirização irrestrita
As indústrias usam a prerrogativa legal de terceirização irrestrita para mascarar a responsabilidade pelo plantio com trabalho escravo. A estratégia envolve contratos falsos com terceirizadas. “Em muitos casos, a gente identifica até cinco degraus nessa escala de transferência de responsabilidade”, explica Camazi.
As usinas permanecem operando o canavial, controlando a quantidade e qualidade da produção. Mantinham a terceirização apenas na contratação do serviço de plantio. “No fim, concluímos que a responsabilidade [pelo trabalho escravo] é das próprias usinas”, diz o auditor.
Muitos contratos de terceirização são feitos com empresas menores, que declaram valores fictícios, sem capacidade econômica para arcar com as indenizações trabalhistas ordenadas pela justiça.
Morte trágica
A morte de um negro escravizado em um canavial de Minas Gerais foi um dos episódios que, neste ano, mais sensibilizaram Camazi.
O homem negro de 34 anos fugiu da fome que assolava sua família no interior do Maranhão. Recrutado para trabalhar em um canavial em Minas Gerais, percebeu que havia sido enganado.
“Ele encaminhou imagens das condições do alojamento, relatou que foi recrutado com falsas promessas, teve que pagar pelo deslocamento. Quando ele chegou, o alojamento era uma garagem improvisada e ele dormia no chão”, conta o auditor do trabalho.
O homem não foi registrado, nem recebeu equipamento de proteção. Para entrar no canavial, teve que comprar uma bota, mas só teve dinheiro para a mais barata. Como ele era pago por produção, teve que trabalhar em um ritmo exaustivo e acabou se ferindo.
O pequeno corte no calcanhar direito incomodava, mas ele continuou trabalhando. Não quis voltar para a família de mãos vazias. O ferimento foi ganhando proporções maiores e infeccionou.
“Ele ficou 3 ou 4 dias no alojamento, pois não estava dando conta nem de calçar a bota, de tão inchado que o pé estava. Os remédios que deram no postinho não fizeram efeito”, narra Camazi.
Os colegas juntaram dinheiro para custear sua volta ao Maranhão. O empregador sequer foi ao alojamento para saber como o trabalhador estava e não arcou com o retorno dele para a cidade natal.
De volta para a família, o homem já tinha o pé muito infeccionado. Lá ele procurou um hospital. A infecção, porém, já havia se espalhado pelo corpo. Extramamente fragilizado, o trabalhador morreu.
“A falta de direitos trabalhistas básicos, um problema muitas vezes menosprezado, acabou levando esse trabalhador a óbito. Até o momento a esposa não conseguiu uma pensão por morte porque ele estava na informalidade”, conta o auditor.
“É uma tragédia achei assustadora pela violência com o ser humano, pela indiferença com uma pessoa que trabalhou tanto e que sequer pode ter um tratamento digno para uma ferida que não era grave”.