Por Patrick Lima.
Natural de Santos, litoral paulista, Marcelo Caetano, 26 anos – Caê – para os colegas de classe, graduou-se recentemente na Universidade de Brasília (UNB). Travou batalhas na vida privada e acadêmica, como o reconhecimento do nome social na Instituição. Dono de um discurso emocionante e empoderador que circulou nas redes sociais, o Cientista Político levantou questões sobre ingresso no ensino superior, genocídio negro, além de severas críticas a academia. “É nossa responsabilidade combater esse genocídio. Um genocídio que começa aqui dentro. Quando são brancos todos os nossos professores. Quando é branca e masculina toda a nossa bibliografia. Se a ciência pensa que tem todas as verdades. Digo que não”.
Marcelo sentiu na pele desde muito cedo a vulnerabilidade. Filho de pais nordestinos, foi criado apenas com o pai e um irmão mais novo, onde aprendeu disciplina e também a dura realidade das ruas. “Fomos criados de forma muito rígida, mas também crescemos soltos nas ruas. Em vários sentidos, as crianças não são consideradas pessoas capazes e seu corpo é tomado como à disposição de qualquer um, especialmente quando se é identificado como uma criança pobre”, contou.
Tímido e calado, cresceu ainda sem noção de sua transexualidade, o que tornou as relações no geral muito difíceis. “Eu não tinha linguagem para expressar aqueles sentimentos. Me sentia perdido e deslocado, mas sem saber o porquê.” A escola, para o adolescente, se tornou um espaço de conflito não somente por conta de sua identidade, mas também por sua negritude. “Tive muita dificuldade de me integrar e sofri muito bullying. Também passei por experiências de racismo, especialmente ligadas ao meu cabelo. O cabelo negro requer outros cuidados, e eu não tinha referências do que ou como fazer… E ele é uma parte muito importante para meninas e mulheres, né?!”, completou.
E se engana quem pensa que o sonho do ensino superior teve início na UNB. Em Curitiba, 2008, Marcelo entrara para o curso de Direito na UFPR (Universidade Federal do Paraná), onde teve contato com a temática da transexualidade pela primeira vez, em uma aula de Direito Civil, onde uma professora citou processos de retificação de registro civil de pessoas trans. “Fiquei ruminando aquilo por um tempo e logo depois entendi que era isso, era daquela forma que eu havia me sentido o tempo todo, mas nunca consegui explicar porque me faltavam as palavras, porque eu não sabia que o destino poderia ser diferente da biologia.” A partir disso, ainda durante a graduação, Marcelo ‘ganhou vida’. Apesar do apoio dos amigos de classe, o convívio com outros setores acadêmicos se tornou insustentável: “Virei motivo de chacota”.
A carga social da transição é pesada e determinante em diversos aspectos, como familiar, social e até amoroso. Para Marcelo, a relação familiar que já era estremecida, teve um ponto final. “Comuniquei à minha família, embora já não vivesse mais com eles, e isso demarcou nosso quase completo afastamento”, lamentou. Diante tantos acontecimentos como a transição, problemas familiares, falta de apoio e problemas na faculdade, Caetano acabou desenvolvendo uma depressão, chegando ao ponto de tentar suicídio algumas vezes. “Acabei adoecendo e fui internado em um manicômio.” Mas logo se reergueria. “Quando saí de lá, decidi que queria fazer uma outra faculdade e, meio que por acaso, acabei prestando o vestibular para Ciência Política na UNB.”
A experiência manicomial marcou muito a vida do jovem, o fazendo travar novas lutas. “O manicômio é na verdade uma prisão, com outro nome, mas a mesma forma. O tratamento lá falha em muito do que se espera do atendimento para a saúde mental”, descreveu. “Me dedico à luta antimanicomial há algum tempo, escrevi minha monografia de conclusão de curso na UNB sobre manicômios judiciários – é uma questão que me toca profundamente, que me faz hoje reconhecer o mundo com novas lentes, de quem já esteve no fundo do fundo”, completou.
UNB
Ao chegar na UNB, Marcelo se deparou com vários entraves institucionais, incluindo o não reconhecimento da sua identidade de gênero, o que o fez passar um semestre inteiro a procura de soluções. “Dei entrada em um ofício junto à reitoria solicitando o uso do nome social. Isso facilitou minha vida em vários sentidos, mas não resolveu meus problemas. ” Sem uma lei que garanta a aplicabilidade deste, o nome social, hoje, funciona de forma paliativa, uma espécie de gambiarra, ficando a cargo dos locais, ‘simpatizarem’ com a causa. “Eu circulo em muitos outros espaços para além dos órgãos e serviços públicos, e nestes outros espaços o nome social simplesmente não existe”, concluiu.
Às vésperas da colação de grau, o formando ainda não tinha garantias se conseguiria se formar de fato ou até mesmo se matricular no mestrado. “Até o último minuto, o nome social continuou sendo um problema, e não só solução”, enfatizou. Em seu discurso, Marcelo criticou o sistema organizacional acadêmico, em sua maioria branco e cisgênero, o que impossibilita e muito a compreensão e efetivação de políticas para transgêneros. “A organização dessas instituições é também pensada a partir de um paradigma cisgênero e binário, o mesmo que organiza toda a sociedade. Quem foge dessa regra acaba sendo sempre submetido a regras que ignoram a sua realidade”, criticou.
Ao lado de tantas batalhas, na vida do formando também caminham afetos. Colegas de classe, colegas de luta – de perto ou de longe – em conjunto fizeram parte de cada vitória. “Eu não teria conseguido sem outras pessoas. Como eu não tenho mais contato com a minha família, as redes de amizade passaram a ser esse lugar de apoio e segurança.”
MOVIMENTOS SOCIAIS
Os movimentos sociais de forma geral, têm muita dificuldade em englobar um discurso interseccional, admitindo outros recortes além de sua raiz de luta. Enquanto homem negro transexual, Marcelo ainda encontra barreiras tanto no movimento negro – que ainda tem dificuldades em reconhecer questões não cisgêneras, quanto no movimento de travestis e transexuais – que muitas das vezes também não englobam discursos raciais. Embora não faça parte de nenhum movimento institucionalizado de nenhum dos dois segmentos, o jovem sempre que possível, incorpora os debates. “Essas questões, assim como outras, são muito importantes na minha vida e estão presentes nas minhas reflexões e práticas cotidianas”, afirmou.
A questão da raça, ao longo da vida e juntamente com o processo de transição, se tornou algo forte e marcante. Dono de um black de respeito e um estilo próprio, Caetano teme sua nova leitura social.“Trata-se não só de me tornar um homem, mas um homem negro. O processo de observar que as pessoas agora me reconhecem como um homem negro, e por isso sempre um suspeito, uma ameaça, é muito intenso e vem acompanhado de muitas violências”, lamentou.
FUTURO
Marcelo, hoje Cientista Político formado por uma das universidades mais renomadas do país, não perde a simplicidade e humildade. Com muita responsabilidade, faz o constante exercício de reconhecimento de privilégios.“Como uma pessoa trans e negra que chegou até aqui, acho que tenho muitas responsabilidades. Se eu subi, preciso trazer os meus junto comigo”. E o formando almeja outros voos. Em breve começará um Mestrado em Direito, acompanhado de um sonho futuro de uma nova graduação, dessa vez, em Audiovisual, ambos na UNB. “Minha ideia é mesmo me dedicar à carreira acadêmica, e um dia me tornar professor universitário”, completou.
Marcelo encerra com um tom de esperança, de um futuro acadêmico menos homogêneo, como quem em breve, irá encontrar e reconhecer seus iguais nos corredores das universidades. “Ainda é muito difícil ser negro na universidade. Mesmo que muita coisa tenha mudado, há ainda um longo caminho, mas, se não está ficando mais fácil, está pelo menos um pouco menos solitário. É importante não desistir da briga, mesmo que pareça que a gente nunca vai ganhar. Às vezes não dá mesmo, acontece. Mas é importante, sempre que possível, levantar as questões e relembrar nossa existência”, concluiu.
CONFIRA O DISCURSO NA ÍNTEGRA
“Do alto dos seus títulos
daí de onde você vê
a universidade é pra quê?
pra caber quem?
dentro da sua sala
você se esconde
pra não ver lá fora
ou pra quem tá lá fora não te ver?
o conhecimento que você produz
é pro povo ou pro cnpq?
pra sociedade ou só pra enfeitar lattes?
se quem tá dentro
não vê os muros em volta
quem vê de fora
não enxerga nada além da muralha
se no meio da aula
você diz que eu tô todo errado
eu te digo que pra chegar até aqui
atravessei cerca de arame farpado
você escreve
artigo, livro, capítulo
resumo, paper, ensaio
fala da gente
sem nem lembrar
de olhar no olho da nossa gente
alcança seus índices de produtividade
no dia seguinte,
não sabe nossa cara,
nosso nome, desconhece nossa identidade
nossa cor é objeto de pesquisa
nosso sexo, etnografia
nossas casas são seu campo
e seu olhar
branco, macho, eurocentrado
justifica-se com metodologia
na sua nota da capes
o que conta mais:
seus pontos ou nossa voz?
sua tese ou nossa história?
o que vale mais:
suas oito páginas de referência
ou a nossa ancestral experiência?
e não pense que entramos aqui por favor
que não merecemos
ou que qualquer coisa aqui nos foi dada
cotas não são presente
são só um pequeno pedaço do que nos devem
chegamos aqui forjados
pelos que nos precederam
não se esqueçam:
nossos passos vêm de longe
se estou aqui hoje
é só porque tantos outros já vieram
erguer muros não vai nos impedir de entrar
se precisar,
nós vamos derrubar
tomar de assalto o que é nosso
e não queremos só um lugar à mesa
queremos interromper o jantar
e começar tudo de novo
reerguer uma universidade que seja do povo e para o povo
onde não apenas se fala sobre o outro
mas onde o outro se torna um nós que é capaz de falar sobre si mesmo
não criem a ilusão
de que tudo que se diz na academia é a verdade
mas lembrem-se: é sempre poder
inclusive, o poder de dizer
o que é a verdade
como cientistas políticos
termos lugar para dizer o que é a democracia
vivemos em uma, nossos professores vão dizer
Estado Democrático de Direito é o seu nome
Será mesmo?
pois vamos aos fatos:
Planaltina, Distrito Federal, 26 de Maio de 2013. Antonio Pereira de Araújo, auxiliar de serviços gerais, é detido em abordagem padrão. Conduzido à delegacia, nunca mais foi visto.
Rocinha, Rio de Janeiro, 14 de Julho de 2014. Amarildo Dias de Souza, pedreiro, limpava peixe na porta de casa quando policias que conduziam a operação “Paz Armada” o abordaram. Nunca mais foi visto.
Grajaú, São Paulo, 16 de Outubro de 2015. Yago Pedrosa Araújo, estudante de 16 anos, é parado em mais uma abordagem daquelas: padrão! 4 dias depois é encontrado morto, executado. Nunca mais foi visto vivo.
Infelizmente, a lista poderia continuar: Cláudia Ferreira da Silva, Cristian do Carmo, Rafael de Souza Paulino, Roberto de Souza Penha, Carlos Eduardo da Silva de Souza, Wilton Domingos Junior, Cleiton Correa de Souza e tantos outros.
Os mortos da democracia se acumulam
Já não se escondem mais nos porões
Mas ficam expostos, em plena luz do dia
Nas vielas de uma quebrada qualquer
Se a Democracia existe, ela não é para todos
Mas hoje, saímos daqui com o poder de dizer
É nossa a responsabilidade de combater esse genocídio
Um genocídio que começa aqui dentro
Quando são brancos todos os nossos professores
Quando é branca e masculina toda a nossa bibliografia
Se a ciência pensa que tem todas as verdades
Digo-lhe agora que não
Que não sabe o que é caminhar com a cabeça na mira de uma HK
Que não sabe o que é ter o corpo vendido por séculos
Ter a mente diminuída, ver todo um povo destruído
Essa ciência que trabalha com hipóteses
E esquece que o que chama de objeto é feito da carne viva
Ainda aguardamos pelo dia
Em que o preto estará no rosto
Mais do que nas becas
Em que as travestis estarão na escola
Mais do que na esquina
Se esse dia não chega, a gente toma!
Nada nunca foi dado, porque agora seria?
mas ainda vai chegar o dia
Em que outros tantos como eu
Estarão aqui e poderão dizer
Tudo nosso, nada deles!”
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Fonte: Revista Fórum.