O Ministério do Trabalho publicou nesta quarta-feira, 25, uma “NOTA OFICIAL” na qual apresenta suas razões para a não publicação da Lista Suja do trabalho escravo.
O comunicado, no entanto, comporta reparos. Vamos a eles.
1) Respeito à ampla defesa e ao contraditório
De acordo com a nota, “a Portaria que hoje regula a formação da lista, assinada às pressas no último dia do governo anterior, não garante aos cidadãos instrumentos de efetivo exercício dos direitos constitucionalmente assegurados ao contraditório e à ampla defesa”.
Ao contrário do que sugere a Nota, a Portaria é explícita na preservação das garantias do contraditório e da ampla defesa do empregador flagrado explorando trabalhadores em condições análogas à de escravo. A inclusão do nome do infrator no cadastro somente se efetiva após a decisão final e exauriente, no âmbito da administração, sobre a legalidade do auto de infração, consoante dispõem os §§ 1º e 2º do art. 2º da referida Portaria. Vejam:
- 1º A inclusão do empregador somente ocorrerá após a prolação de decisão administrativa irrecorrível de procedência do auto de infração lavrado na ação fiscal em razão da constatação de exploração de trabalho em condições análogas à de escravo.
- 2º Será assegurado ao administrado, no processo administrativo do auto de infração, o exercício do contraditório e da ampla defesa a respeito da conclusão da Inspeção do Trabalho de constatação de trabalho em condições análogas à de escravo, na forma dos art. 629 a 638 do Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 (Consolidação das Leis do Trabalho) e da Portaria MTPS nº 854, de 25 de junho de 2015. (destaque nosso).
Ainda sobre essa questão, o Supremo Tribunal Federal, ao decidir a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.209/DF, fez questão de registrar, expressamente, que eventual questionamento sobre o exercício do direito de defesa administrativa foi devidamente sanado pela atual Portaria nº 4/2016.
Assim, já tendo sido firmado o entendimento específico da Suprema Corte sobre o tópico, não cabe ao Ministério do Trabalho lançar questionamentos acerca da lisura e da legalidade dos seus próprios atos normativos, os quais sempre foram por ele defendidos judicial e extrajudicialmente.
2) Segurança jurídica
A Nota destaca que o Ministério do Trabalho teria criado “um amplo Grupo de Trabalho” com o propósito de “dar a segurança jurídica necessária” à Portaria que regulamenta a Lista Suja. Para tanto, teriam sido “convidados a participar do GT o Ministério Público do Trabalho, a OAB, representantes do governo, dos trabalhadores e dos empregadores, respeitando o modelo de representação tripartite da OIT”.
Trata-se de uma afirmação que merece considerações.
O mencionado Grupo de Trabalho não é tão amplo como sugere a Nota. Não foram convidados vários órgãos públicos e entidades da sociedade civil organizada que possuem o enfrentamento à escravidão como objetivo institucional e que, por isso, integram a Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo – CONATRAE, fórum qualificado e com histórico nas discussões relacionadas ao combate à escravidão contemporânea.
Ademais, diferentemente do que sugere a Nota, o GT não observa o modelo de representação tripartite. Nenhum dos órgãos e entidades convidados, sequer a representação de empregados e empregadores, possui poder decisório. Só compõem o referido GT na condição de membros e, portanto, com direito a voto, o Gabinete do Ministro, a Consultoria Jurídica e a Secretaria de Inspeção do Trabalho (art. 2º, Portaria nº 1.429/2016).
No sentido oposto do que alega a nota, o Grupo já nasceu permeado de insegurança jurídica. Primeiro, porque não se sabe, até o presente momento, quais serão as centrais sindicais e as confederações patronais convidadas. Segundo, porque a Portaria instituidora do GT não esclarece os pontos controvertidos do atual ato regulamentador que serão objeto de discussão e melhoramento. E terceiro, porque não existe um cronograma com previsão expressa de prazos para a publicação da Lista Suja.
Trata-se de instrumento que, no estágio atual de discussão do tema, respalda, formalmente, a injustificada omissão do Ministério do Trabalho e milita contra a erradicação do Trabalho Escravo.
3) Natureza meramente informativa e inexistência de caráter punitivo
Diz a Nota que “no Estado de São Paulo empresas que estiverem inclusas na lista são obrigadas a fechar as portas”.
A afirmação é descontextualizada e temerária.
Ao que parece, a nota pretende fazer referência à Lei Paulista nº 14.946/2013, a qual sanciona o empregador que se aproveita economicamente, de forma intencional, dos frutos do trabalho escravo, com a suspensão por dez anos de seu cadastro junto ao ICMS Paulista. A sanção – que não decorre da Lista Suja – restringe-se exclusivamente ao território do Estado de São Paulo e possui limitação temporal.
A mencionada Lei estadual – elogiada por organismos internacionais, como a ONU, vale ressaltar – objetiva proteger um ambiente de concorrência leal no Estado de São Paulo, tutelando os interesses públicos primário, concernente ao direito humano de não ser submetido à escravidão, e secundário, vertido na arrecadação fiscal e no equilíbrio atuarial do erário.
A Lista Suja, merece registro, não condena ninguém. Ela simplesmente faz cumprir os princípios constitucionais da publicidade do ato administrativo e da transparência na Administração Pública.
4) Lista suja e desemprego
A Nota afirma que “eventuais inclusões indevidas não apenas redundariam em injustiças com graves consequências a cidadãos e empresas, gerando desemprego, como acarretaria nova judicialização do tema, comprometendo a credibilidade do Cadastro”.
Há aqui exagero e generalização que devem ser corrigidos. O nome do empregador só deve constar na Lista após decisão exauriente da qual não caiba qualquer recurso no âmbito administrativo.
Na direção contrária à que sugere o texto, não haverá “inclusões indevidas”, nem “desemprego”, tampouco comprometimento da “credibilidade do Cadastro”.
A Lista Suja é um instrumento historicamente crível: desde que surgiu, nos idos de 2003, todas as empresas e instituições financeiras adotam-na como referência para desenvolver políticas de responsabilidade social, gerenciando os riscos decorrentes da celebração de relações comerciais com empregadores autuados por submeterem seus trabalhadores a situações de escravidão.
Conforme apontou o próprio Valor Econômico, no ano de 2014 – quando a Lista ainda era divulgada –, a taxa de desemprego, após sucessivas quedas, atingiu a mínima histórica.
Portanto, a Lista Suja passa longe de ser uma das causas do desemprego. Ao contrário, é um importe instrumento para o desenvolvimento de um mercado concorrencial livre e saudável, conforme preconiza a Constituição Federal.
5) Assinatura do Protocolo à Convenção nº 29 da OIT e a necessária aprovação do Congresso Nacional
A Nota afirma que “o ministro Ronaldo Nogueira assinou o Protocolo à Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de combate ao trabalho forçado”.
Na passagem, a Nota corrige a matéria publicada no dia 18 do mês em curso, cujo título assegura: “Ministério do Trabalho ratifica protocolo da OIT contra trabalho forçado”.
Como é sabido, a ratificação do referido instrumento internacional compete ao Congresso Nacional, cujo trâmite prevê a chancela prévia do Poder Executivo, nos termos dos artigos 49, I, e 84, VII, da Constituição da República.
Ainda há, portanto, todo o caminho do devido processo legislativo a ser percorrido no âmbito do Congresso Nacional para que o referido Protocolo produza efeitos legais em nosso país.
6) Quantidade de trabalhadores resgatados nos últimos 15 anos
Mesmo na referência ao número de resgates a Nota precisa ser ajustada à realidade.
De acordo com dados fornecidos pelo próprio Ministério do Trabalho, foram resgatados nos últimos 15 anos mais de 45 mil trabalhadores em situação de trabalho escravo. Portanto, labora em equívoco a Nota, ao afirmar que o número esse número seria 15 mil.
É necessário destacar que os números expressivos são fruto de um trabalho articulado entre várias instituições públicas e entidades da sociedade civil organizada, em parceria com auditoria do trabalho que, bravamente, resiste às sucessivas tentativas de sucateamento.
7) Decisão judicial que determinou a publicação da Lista Suja
Nos arremates, a nota diz que “a postura serena e cautelosa da Administração Pública está amparada em decisão judicial que reconsiderou a decisão liminar que determinava a divulgação da lista”.
Não existiu retratação ou reconsideração da liminar pelo Juízo da 11ª Vara do Trabalho Brasília: “a fim de evitar controvérsia procedimental”, nos termos do pronunciamento judicial, houve a mera concessão de prazo de 72 (setenta e duas) horas para a União se manifestar e a suspensão do prazo para cumprimento da liminar.
8) Direito humano incondicional de não ser submetido à escravidão
A nota se encerra com a seguinte afirmação: “Nenhum direito é absoluto, e os direitos de cada cidadão são limitados pelos direitos dos outros”.
A expressão resvala para as simplificações próximas ao senso comum. A condição de cidadão é incompatível com a condição de quem se vê submetido à escravidão. Preservar os seus cidadãos mais humildes dessa condição aviltante é um dever absoluto das autoridades e das instituições. Os subterfúgios nessa questão central afetam aos Direitos Humanos e depõem contra a pretensão de que sejamos reconhecidos como um país moderno e civilizado.
Com tristeza, constata-se que os mecanismos e os argumentos protelatórios indicam que falta a exata compreensão da natureza incondicional do direito tutelado nessa demanda.
Brasília, 27 de janeiro de 2017
COORDENADORIA NACIONAL DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO
MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABAHO
TIAGO MUNIZ CAVALCANTI
COORDENADOR NACIONAL
MAURÍCIO FERREIRA BRITO
VICE-COORDENADOR NACIONAL
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Foto: Ascom PGT
Fonte: Ministério Público do Trabalho – MPT | CPT