Por Carol Gómez e Victor Lacombe, estudantes de jornalismo na UFSC, especial para o objETHOS.
A reportagem “Centro Histórico abandonado”, do jornalista Michael Gonçalves, foi publicada dia 12 de junho na edição impressa do jornal Notícias do Dia (ND), e traz uma pauta importante e bem escolhida. O texto aborda a condição degradada da parte leste do Centro de Florianópolis, assunto que interessa à população. O jornalista aponta as principais razões para essa situação: a desativação do Terminal Cidade de Florianópolis e a atual concentração do movimento de pessoas no Terminal de Integração do Centro (TICEN), o fechamento da escola Antonieta de Barros e a transferência de uma unidade da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).
Ou seja, as escolhas do poder público, somadas ao descaso e negligência, teriam causado a condição de abandono na qual a região se encontra hoje. A teoria faz sentido: sem incentivo da prefeitura de manter órgãos públicos no local nem esforços de revitalização, a área citada fica, de fato, vazia e mal cuidada. A reportagem começa bem ao expor o problema e o fato de que existem projetos de revitalização, mas que não são implementados.
Porém, o texto fica problemático ao abordar a questão das pessoas em situação de rua que pernoitam no Centro. A reportagem, que começa com uma razão que poderia ser explorada, acaba sendo apenas mais um texto que desumaniza as pessoas em situação de rua e nem sequer se dá o trabalho de ouvi-las.
Logo no primeiro parágrafo, o jornalista faz uma relação direta entre a estadia dessas pessoas e a condição degradada do espaço que ocupam. Ao citar a Praça XV de Novembro, por exemplo, Michael escreve: “Infelizmente a Praça 15 de Novembro virou dormitório e banheiro para as pessoas em situação de rua. O problema é que o local é um ponto turístico de Florianópolis, ao lado da Catedral Metropolitana”. Nessa frase, o repórter naturaliza a condição social das pessoas que são forçadas a pernoitar ali, tratando sua situação como um fato da vida que não pode ser mudado, e não a consequência de políticas públicas negligentes e uma sociedade excludente. A ideia implícita é de que, se estivessem em outros lugares menos visíveis ou menos turísticos, pessoas estarem em situação de rua não seria um problema.
A partir daí, os próximos oito parágrafos são construídos por meio de afirmações e correlações semelhantes à citada acima e trazem uma narrativa que coloca as pessoas em situação de rua como responsáveis pela sujeira, pichações dos prédios e consequentemente pelo abandono da área e pela crescente criminalidade no local. Nesse ponto, o jornalista parece concordar com a teoria das janelas quebradas, pensamento sociológico estadunidense desenvolvido nos anos 1960. Para os sociólogos da Universidade de Chicago, James Q. Wilson e George Kelling, se um prédio passa muito tempo com uma janela quebrada sem que ninguém a conserte, logo esse prédio será alvo de todo tipo de vandalismo, invasão, uso de drogas e, por fim, incêndio. A ideia é que o crime não vem da pobreza, e sim de uma percepção que indivíduos têm do espaço que ocupam: se ele é bem cuidado, as pessoas cometem menos crimes. Se é mau cuidado, mais crimes.
A teoria das janelas quebradas foi usada para justificar a política de “tolerância zero” com crimes pequenos nos EUA, levando à criação de leis com penas pesadas para pichação, vandalismo, beber e dormir na rua. O que essa teoria jamais conseguiu provar, no entanto, é a relação entre crimes pequenos e crimes mais graves. Pelo contrário, prender pessoas por anos por causa de práticas como pichação serviu como uma política de encarceramento da juventude negra em Nova York, onde foi mais aplicada, nos anos 1990. Hoje, críticos escrevem que esse pensamento é apenas mais uma maneira de criminalizar a pobreza, como é feito ao longo da reportagem.
Outro aspecto que contribui para essa narrativa de culpabilização é a escolha das fontes, que corroboram com a ideia de que as pessoas em situação de rua são causadoras dos problemas na região. O jornalista dá voz a quatro fontes não oficiais e uma oficial, e todas elas citam pessoas em situação de rua ou flanelinhas. Uma delas, inclusive, afirma que: “os moradores de rua são os mais bem tratados do Brasil e, por isso, eles também são os mais tranquilos. Eles têm comida e roupas sem fazer esforço e passam o dia na praça”.
Em nenhum momento Michael entrevista as pessoas que são colocadas como parte do problema ou alguma outra fonte que expresse visão distinta sobre a questão. Em um jornalismo que supostamente deveria buscar diferentes lados e pontos de vista de uma situação, as pessoas em situação de rua são citadas repetidas vezes sem ao menos ter espaço para uma fala. Sabendo ouvir, há quem queira falar: existem outras reportagens que, embora não abordem a mesma pauta, trouxeram depoimento das pessoas em situação de rua, como é o caso da matéria exibida no jornal SBT Meio Dia – Moradores em situação de rua sofrem efeitos do frio em Florianópolis – e da reportagem do Jornal Zero – A rua não é sopa: vida de quem quer mais do que um prato de comida.
Ao passo que foca a narrativa nas pessoas em situação de rua, o jornalista não explica quais são os projetos para a revitalização e dá margem para perguntas: quantos projetos? O que eles propõem? Quais as soluções que apresentam? Quem elabora essas propostas?
Nos dois parágrafos, cerca de 1.226 caracteres, que fazem parte da retranca “Prefeitura busca recursos no BNDES” e encerram a reportagem, a entrevista com o chefe de gabinete da Prefeitura de Florianópolis, Bruno Oliveira, aborda rapidamente a questão financeira e quais as atitudes a prefeitura está tomando, porém logo o foco volta a ser situação da Praça XV de Novembro, tratando da proposta de fechamento do local durante a madrugada duas vezes – uma na parte construída pelo repórter, outra na própria fala do entrevistado. Ideias de cerceamento do espaço público durante certos horários só servem como forma de afastar sujeitos “indesejados” de lugares nobres, contribuindo cada vez mais para a sua marginalização e invisibilidade.
A conclusão é que a reportagem é uma oportunidade perdida. A pauta é muito interessante, com possibilidades de angulação relevantes para pressionar os poderes público e privado (afinal, dirigentes do CDL apenas transferem a responsabilidade para a Prefeitura) a agir de forma consequente e humanizada em prol da revitalização do espaço. Ao invés disso, o jornalista escolhe a saída fácil: culpa, de maneira implícita e explícita (através das fontes escolhidas), os mais vulneráveis pelos problemas da sociedade, sem dar-lhes o direito de serem ouvidos.
O objETHOS contatou o jornalista Michael Gonçalves diversas vezes, por e-mail e por telefone, para que pudesse falar sobre o processo de apuração, defender suas escolhas e apresentar seu ponto de vista, cortesia que ele não estendeu às pessoas em situação de rua. No entanto, ele preferiu não se manifestar.
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Este artigo foi produzido na disciplina Crítica do Jornalismo, que motiva os estudantes a desenvolverem capacidades de leitura crítica sobre os veículos jornalísticos locais. O texto foi elaborado por meio de análise do jornal impresso Notícias do Dia (RIC/Record), observado no período de 11 a 15 de junho.