A Federação Internacional de Natação (Fina) anunciou no domingo (19/6) a decisão de barrar a participação de atletas transgênero das competições de elite em categorias femininas caso tenham passado por alguma das etapas da puberdade masculina.
Para que possam entrar nas competições femininas, conforme as novas regras, as atletas precisam ter feito a transição de gênero até os 12 anos de idade.
A mudança foi definida durante o congresso geral extraordinário da Fina, em Budapeste, onde acontece o campeonato mundial de natação. Aprovada com 71% dos votos dos 152 membros da federação, foi descrita pela entidade como “apenas um passo em direção à total inclusão” de atletas transgênero.
Em paralelo, a federação informou que vai criar uma categoria aberta para atletas trans.
Mais cedo, os membros da Fina haviam discutido as conclusões do relatório de uma força-tarefa sobre o tema composta por figuras importantes do mundo da medicina, do direito e do esporte.
“A abordagem da Fina na elaboração desta política foi ampla, baseada na ciência e na inclusão. E, mais importante, enfatizando a equidade competitiva”, declarou Brent Nowicki, diretor-executivo do órgão.
O presidente da federação, Husain Al-Musallam, afirmou que a organização está tentando “preservar os direitos de nossos atletas de competir”, mas também “proteger a equidade competitiva”.
“A Fina sempre acolherá todos os atletas. A criação de uma categoria aberta significará que todos terão a oportunidade de competir em nível de elite. Como isso ainda não foi feito, a federação precisará abrir o caminho. Quero que os atletas se sintam incluídos e capazes de desenvolver suas ideias durante esse processo.”
A ex-nadadora Sharron Davies, que se posiciona contra a participação de atletas transgênero na elite da natação feminina, disse estar “orgulhosa” do esporte e da federação.
Em uma manifestação no Twitter, a britânica agradeceu a Fina “por se basear na ciência, conversar com os atletas e treinadores e defender um esporte justo para as mulheres”. “A natação sempre acolherá a todos, não importa como você se identifique, mas a equidade é a pedra angular do esporte”, completou.
Já a organização Athlete Ally, um grupo de defesa dos direitos LGBT que organizou uma carta de apoio à nadadora americana trans Lia Thomas em fevereiro, classificou a nova política como “discriminatória, nociva, não-científica e não-alinhada com os princípios do COI [Comitê Olímpico Internacional] de 2021”.
“Se realmente queremos proteger os esportes femininos, devemos incluir todas as mulheres”, pontuou o grupo em seu perfil no Twitter.
Decisão semelhante no ciclismo
A mudança vem na esteira de uma decisão semelhante anunciada na quinta-feira (16/6) pela União Ciclística Internacional (UCI), entidade reguladora do ciclismo. O esporte também limitou o espaço para participação de atletas trans nas competições, dobrando o período de tempo para que uma atleta trans possa competir depois de concluída sua transição de gênero.
A regra anterior estabelecia que os níveis de testosterona da atleta deveriam estar estáveis em patamar inferior a 5 nanomoles por litro por um período de 12 meses antes da competição. Com a mudança, o nível de testosterona permitido caiu para 2,5 nmol/L e o período de tempo dobrou para 24 meses.
O debate em torno da participação de atletas trans nas competições de esportes aquáticos ganhou os holofotes com o caso da americana Lia Thomas.
Thomas nadou pela equipe masculina da Pensilvânia por três temporadas antes de iniciar a terapia de reposição hormonal em 2019.
Desde então, quebrou recordes com a equipe de natação da universidade.
Mais de 300 atletas universitários, da equipe dos EUA e nadadores olímpicos assinaram uma carta aberta em apoio a Thomas e a todos os nadadores transgênero e não-binários, mas outros esportistas e organizações expressaram preocupação em torno da questão.
Algumas das colegas de equipe de Thomas e seus pais escreveram cartas anônimas apoiando seu direito à transição, mas acrescentando que julgavam ser injusto ela competir como mulher.
O USA Swimming, órgão regulador da natação nos EUA, atualizou sua política para nadadores de elite em fevereiro para permitir que atletas trans participem de competições e estabeleceu critérios com objetivo de reduzir quaisquer vantagens desleais, incluindo testes de nível de testosterona nos 36 meses antes das competições.
No ano passado, a levantadora de peso Laurel Hubbard, da Nova Zelândia, tornou-se a primeira atleta abertamente transgênero a competir em uma Olimpíada em uma categoria de sexo diferente daquele com que nasceu.
O que dizem os especialistas?
Para o fisiologista e especialista em desempenho humano Michael Joyner, “a testosterona na puberdade masculina altera os determinantes fisiológicos do desempenho humano e explica as diferenças baseadas no sexo na performance humana, consideradas claramente evidentes aos 12 anos”.
“Mesmo que a testosterona seja suprimida, seus efeitos de melhoria de desempenho serão mantidos.”
Ativista, pesquisador e advogado, Adrian Jjuuko ressalta que a mudança anunciada pela Fina “enfatiza que nenhum atleta é excluído de competições da federação ou de estabelecer recordes com base em seu gênero legal, identidade de gênero ou expressão de gênero”.
Assim, “[a categoria aberta proposta] não deve se tornar uma categoria que se soma aos níveis já existentes de discriminação e marginalização contra esses grupos. Vejo esta política como apenas o primeiro passo para a inclusão e apoio total à participação de atletas transgênero e de gênero diverso em esportes aquáticos, e há muito mais a ser feito.”
Sandra Hunter, fisiologista do exercício especializada em diferenças de sexo e idade no desempenho atlético, argumenta que, “dos 14 anos para cima, a diferença entre meninos e meninas é substancial. Isso se deve às vantagens desenvolvidas devido às adaptações fisiológicas da testosterona e à presença do cromossomo Y”.
“Algumas dessas vantagens físicas são de origem estrutural, como altura, comprimento dos membros, tamanho do coração, tamanho do pulmão e serão mantidas, mesmo com a supressão ou redução da testosterona que ocorre na transição do masculino para o feminino.”
A ex-campeã olímpica e mundial de natação Summer Sanders defende a existência de categorias femininas e masculinas e, em paralelo, de categorias para mulheres trans e homens trans.
“A competição justa é um ponto forte e básico de nossa comunidade – essa abordagem preserva a integridade do processo esportivo existente hoje, no qual milhões de meninas e mulheres participam anualmente.”
Um dos maiores debates do esporte
A conversa em torno da inclusão de mulheres trans no esporte feminino divide opiniões dentro e fora do mundo do esporte.
Muitos argumentam que as mulheres trans não devem competir em categorias femininas por conta das vantagens físicas que possam ter; outros argumentam que o esporte deveria ser mais inclusivo.
O presidente da World Athletics (Associação Internacional de Federações do Atletismo), Lord Coe, disse que a “integridade” e o “futuro” do esporte feminino se tornariam “muito frágeis” se as organizações esportivas cometerem erros no desenho dos respectivos regulamentos para atletas transgênero.
O cerne do debate em torno da presença de mulheres trans nas competições femininas envolve o complexo equilíbrio entre inclusão, equidade esportiva e segurança – essencialmente, se mulheres trans podem competir em categorias femininas sem que tenham uma vantagem desleal ou que apresentem uma ameaça de lesão para as concorrentes.
Mulheres trans têm que aderir a uma série de regras para competir em esportes específicos, incluindo, em muitos casos, reduzir seus níveis de testosterona a uma certa quantidade e por um determinado período de tempo antes de competir.
Há preocupações, no entanto, como destacado na decisão da natação, de que as atletas continuem tendo uma vantagem física ao passarem pela puberdade masculina, mesmo que posteriormente reduzam seus níveis de testosterona.