Casarão abandonado é ocupado e poeticamente experimentado. A partir de diálogo com o governador, pode virar centro cultural permanente
Por Bruna Bernacchio
Até 1948, o casarão fora hospital militar. Hospital psiquiátrico infantil até 1979 e depois, até 1994, escola para crianças com necessidades especiais. Foi então tombado como patrimônio histórico municipal. A partir daí, não foi de uso algum. Vizinho do 1º Batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais, o prédio está ligado ao surgimento do bairro, Santa Efigênia, e da cidade de Belo Horizonte. Desde 26 de outubro, transformou-se no Espaço Comum Luiz Estrela – “Centro Cultural Comunitário para formação e expressão popular”.
Com a ocupação autogestionada, em que as próprias pessoas cuidam da cidade, o casarão se tornaria um centro de exercício político e experimentação artístico-cultural permanente. Logo na “entrada“, em meio a poeira e entulho, aconteceu a primeira assembleia sobre as diretrizes e métodos de utilização imediata do espaço. Horas antes, vizinhos veriam passar um pequeno bloco de mascarados fantasiados, a dançar em frente ao velho prédio — até então quase invisível na nobre área hospitalar. E já no primeiro sol o lugar abrigava feira livre de trocas, congada, almoço comunitário, mutirão de horta, convidando os moradores do entorno a entrar pelo tapete vermelho e ficar.
O nome é homenagem a Luiz Estrela, jovem poeta e morador de rua da região. Com o grupo “Gangue das Bonecas”, ele participou de diversas intervenções sobre gênero e diversidade sexual nas ruas de BH, até que um dia, na Copa das Confederações, foi espancado até a morte, num assassinato cuja origem nunca foi investigada. Ao tom de perucas e violinos, sua figura foi a única intervenção consensuada nas paredes do Espaço em risco de queda.
Não há um grupo responsável, todos podem ser gestores, de acordo com seu envolvimento no processo. A limpeza, por exemplo, foi pensada de forma a agredir o mínimo possível a bela arquitetura em deterioração, e daí surgiu a comissão de estrutura. Agora já são 12 comissões. A de programação agita: palco aberto de sarau, exposições de arte, performances de teatro; oficinas de pintura, kung fu, yoga, de palhaços; bate-papos sobre a loucura e a luta antimaniconial, sobre mobilidade, alguns em inglês; discotecagem, capoeira – e infinitamente vai. Os momentos de decisões mais importantes são divulgados na página do facebook, como também os pedidos de doações necessárias.
Para as primeiras horas de trabalho era preciso fiação, água, papel higiênico e pão. Agora, os almoços comunitários, quase diários, alimentam todos. Também faz parte do ciclo a destinação dos restos para composteira, que servirão de adubo para a horta. Na segunda semana, já recebiam cadeiras, mesas e um piano.
Diálogo com governo
Para embasar a legitimidade da ocupação, o grupo recorre à Constituição. Primeiro, ao artigo 5º, inc. XXIII, que discorre sobre a função social da propriedade, e depois pelo artigo 216, parágrafo 1: “O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro […]”. A apropriação do espaço acontece, então, como forma de cumprir um dever de que o Estado não deu conta. Centenas de moradores, profissionais da cultura, políticos, e cidadãos passaram pelo espaço e prestaram apoio à ocupação. Pauta na mídia, obteve também apoio da “opinião pública”.
Há, porém, um agravante. Desde julho, o prédio está sob responsabilidade da Fundação Educacional Lucas Machado (Feluma), entidade particular à qual foi cedido por 20 anos para construir ali memorial do ex-presidente Juscelino Kubitschek – concessão essa que pode ser cancelada pelo governo do estado, proprietário do imóvel. A Feluma impetrou liminar, que a partir de ação aberta pelos advogados do grupo foi suspensa pelo TJMG.
Na última terça-feira, dia 19, na segunda reunião com representantes do governo do estado, os ativistas levaram uma proposta inicial de projeto, organizado em três eixos (Estruturação e Autogestão; Arte, Cultura e Educação; Patrimônio Cultural e Memória). Também solicitaram, pela segunda vez, cancelamento definitivo da liminar e autorização para reforma do prédio, a ser paga pelos próprios ativistas. Segundo Ronaldo Pedron, assessor de Articulação e Parceria Social do Estado de Minas Gerais, um grupo de trabalho com representantes da sociedade e do estado deverá ser constituído para debater a reconstrução do espaço, e uma reunião será marcada com a Feluma e o Ministério Público para falar dos termos que podem levar à suspensão temporária da cessão do imóvel.
Poesias políticas em rede
A ideia de ocupar o prédio para criação do Espaço Comum Luiz Estrela começa a gerada a partir de 2010, com o Movimento Praia da Estação. Em resposta à proibição de eventos de qualquer natureza na Praça da Estação, belo-horizontinos passaram a frequentá-la vestidos de banhistas, todos os sábados. Ali, a ocupação do espaço público tomou forma de festa. A partir das jornadas de junho, as ocupações ganharam força. Em seguida à maior manifestação, dia 18, foi realizada a primeira Assembleia Popular Horizontal de Belo Horizonte, sob o Viaduto Santa Teresa, com cerca de 3 mil pessoas. Foi quando decidiram ocupar de forma pacífica a Câmara dos Vereadores e a Prefeitura, o que resultou em negociação com o prefeito Márcio Lacerda para regularização de seis ocupações de moradia. A última sessão da Assembleia, que continua acontecendo quinzenalmente, já foi no Espaço Comum.
Outras intervenções políticas-artísticas-culturais vêm sendo realizadas na cidade. O projeto A Ocupação, que acontece no que passou a se chamar “Corredor Cultural de BH”, já está na quinta versão. “Maneira autônoma, coletiva, de construir circuitos culturais, lugares de convívio, extremamente abertos” – disse Augustin de Tugny, vice-diretor da Escola de Belas Artes da UFMG. “Outras formas de compartilhar, que não passam necessariamente pelo poder capitalista”. O desafio é construir o comum: sinta-se incluído.
Fonte: Outras Palavras.