Nas periferias, policiais forçam pessoas a mostrarem suas conversas de Whatsapp

“Pra procurar se vocês vendem droga.”

Essa foi a resposta do soldado da Polícia Militar que abordou Renata* e um amigo quando ela perguntou por que seu WhatsApp estava sendo vasculhado. Naquela tarde de novembro, os amigos passavam perto de um local conhecido por ser uma boca de fumo, próximo à rodovia Raposo Tavares, na Zona Oeste da capital paulista.

Uma viatura então sinalizou para que parassem e descessem do carro. Os policiais, desconfiados, revistaram o carro sem encontrar nada que comprometesse os amigos. Foi nesse momento que pediram os celulares de ambos. Desconfortável com a situação – na época Renata namorava e havia trocado nudes com o seu parceiro – falou que o PM não poderia inspecionar o celular dela daquela maneira.

Os policiais não gostaram nada da resposta. Sem encontrar nenhuma prova que incriminasse os amigos, dispensaram-nos, mas não sem antes dizer que se Renata estivesse em casa cuidando de seu filho – criança com a qual tinha fotos no aparelho – não estaria passando por aquele constrangimento.

De acordo com o defensor público do Estado de São Paulo e diretor do IBCCRIM, Carlos Isa, esta é uma história que acontece repetidas vezes nas periferias do Brasil: policiais e agentes do governo acessando de maneira ilegal aparelhos celulares de suspeitos em busca de provas para crimes que eles supostamente teriam cometido. Ele destaca que essas abordagens acontecem principalmente a suspeitos de tráfico de drogas. “Algumas são apreendidas com uma pequena quantidade de droga. Praticamente nunca a quantidade de droga é significativa”, diz. A partir daí, na busca por conexões e outros suspeitos, os agentes responsáveis pela abordagem pedem o celular do suspeito durante a revista.

O problema é que tal coleta de evidências não tem sustentação na lei e pode chegar à invalidar a ação legal baseada nele, caso o suspeito seja processado. Segundo explicou o juiz e professor de direito da USP Marcos Zilli durante o Congresso Internacional sobre Direitos Fundamentais e Processo Penal na Era Digital, realizado em São Paulo no começo do mês, este tipo de prova se enquadra no que é conhecido como “teoria dos frutos da árvore envenenada“: uma única evidência obtida de forma ilegal pode contaminar o processo como um todo e, por isso, a prova deve ser descartada.

Durante a palestra, Zilli expôs um caso em que dois suspeitos foram apreendidos portando drogas – tentamos buscar os dados dessas pessoas, mas o advogado afirmou que o caso está sob sigilo. Na situação, os policiais acessaram o aparelho celular deles e, ao ler suas conversas pelo Whatsapp, chegaram a uma terceira pessoa, que também foi processada junto dos dois primeiros. “Este terceiro suspeito foi liberado, pois a evidência que levou a sua apreensão foi obtida de forma ilegal.”

“É difícil que uma pessoa não autorize uma diligência durante a madrugada com policiais armados.”

Mesmo em caso de prisão em flagrante, a lei brasileira não permite o acesso ao celular de suspeitos sem a devida ordem judicial. Segundo a lei de interceptação telefônica e telemática, este tipo de acesso só pode acontecer com autorização judicial dentro de uma investigação criminal. Nos casos em que Isa relata, essa apreensão é casual. “Não é fruto de nenhuma investigação prévia, não existe nenhum outro elemento que permita desconfiar daquela pessoa sobre tráfico de drogas, de forma a corroborar aquela suspeita policial”, afirma.

O defensor público também mencionou que, em vários desses casos, a alegação oficial foi que o abordado autorizou o acesso ao aparelho por parte dos agentes. “É difícil que uma pessoa não autorize uma diligência durante a madrugada com policiais armados. E, mesmo que ele não autorize, em vários casos os agentes falam que este foi o caso buscando validar esta prova, o que é um absurdo. E o judiciário não poderia de maneira nenhuma validar este tipo de prova, no entanto validam.”

Em diversos casos relatados pelo defensor, as provas são aceitas por juízes de primeira instância, ignorando a jurisprudência – decisões judiciais anteriores que ajudam a guiar o que deve ser feito em determinados casos. “Em São Paulo isso tem sido majoritariamente aceito, o que nos faz levar a questão para instâncias superiores, o Superior Tribunal de Justiça e o Superior Tribunal Federal.” Nessas instâncias, as provas coletadas a partir de celulares costumam ser invalidadas. Este tipo de decisão superior vem acontecendo há algum tempo.

Em 2014, o STJ concedeu Habeas Corpus a Leri Souza Silva, suspeito apreendido com 300 comprimidos de ecstasy em Rondônia. Um dos motivadores da decisão dos juízes se deveu à invalidade da transcrição de conversas de Whatsapp do suspeito utilizadas como prova no processo. Caso semelhante aconteceu em 2012 no Superior Tribunal Federal.

Perguntada sobre este tipo de abordagem e da utilização de informações obtidas ilegalmente a partir de celulares de suspeitos como provas em inquéritos, a assessoria de imprensa da Polícia Militar do Estado de São Paulo respondeu em nota que “não é responsável pela instrução do inquérito policial(IP)”. “As provas colhidas pelos policiais militares naqueles casos de flagrante-delito ou outras situações análogas são encaminhadas à polícia judiciária responsável em instruir o IP”, afirmaram, por escrito.

Mas o que fazer em caso de abordagem policial? Segundo as fontes ouvidas por Motherboard, deve-se denunciar. “Caso a pessoa tenha passado por esse tipo de constrangimento, a melhor forma é denunciar a ação policial ao Ministério Público e à corregedoria da força policial que realizou a ação. Caso a pessoa tenha sido processada, o papo é com o seu advogado, pois a prova é ilegal”, completou o defensor público.

Fonte: Mother Board. 

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