Por Inês Castilho.
Passava das 22 horas quando saímos da comedoria do Sesc Pinheiros, cedendo à insistência de uma funcionária. Descemos devagar e fomos indo pela noite até a estação do metrô, trocando as últimas ideias. Seriam as primeiras na família a ter formação universitária? Quanto tempo levariam para chegar em casa, com quantas baldeações? Que som curtem?
Assim fiquei sabendo que são as primeiras a “atravessar a ponte”. Que entre seus pais há porteiros, vendedor, um metalúrgico; que as mães foram empregadas domésticas, comerciária, operária, costureira – e todas praticamente pararam de trabalhar ao se casar ou ter filhos. Que gostam de tudo quanto é tipo de som, como só havia de ser com a diversidade que caracteriza as mulheres da periferia.
“Somos negras, brancas, jovens, idosas, mães de outras meninas. Gostamos de fotografia, balé, funk, teatro. Na entrevista de emprego, o local onde moramos cria constrangimento. ‘Sim, tomo ônibus. Trem. Dois metrôs. E ônibus de novo.’ No happy hour, é comum escutar: ‘Lá entra carro? Essa hora é perigoso. Quer dormir na minha casa?’. A resposta é não. Saímos cedo, voltamos tarde, mas sempre voltamos. Trabalhamos perto, trabalhamos longe, dirigimos carros, usamos ônibus. Somos várias, diferentes histórias, o mesmo lugar. É impossível nos reduzir a um estereótipo.”
É como se retratam, em seu Manifesto, as jovens do coletivo Nós, mulheres da periferia – nove mulheres, oito jornalistas e uma designer de profissão, as primeiras a exibir um diploma universitário na família. São elas: Bianca Pedrina, 31 anos, de Carapicuiba (Grande SP); Reginay Silva, 27, de Cidade Tiradentes, Zona Leste; Lívia Lima, 28, de Artur Alvim, também ZL; Aline Kátia Melo, 32, do bairro Jova Rural, na Zona Norte – com quem consegui conversar – mais Jéssica Moreira, 24, de Perus, Zona Noroeste; Semayat Oliveira, 27, da Cidade Ademar; Cíntia Gomes, 32, do Jardim Ângela e Mayara Penina, 25, de Paraisópolis, os três da Zona Sul; e Priscila Gomes, 32, da Vila Zilda, Zona Norte. “É difícil compatibilizar nossas agendas”, explicaram.
“Nosso desafio é problematizar. A grande mídia massifica, cria estereótipos, nos coloca em meia dúzia de caixinhas e pra cada assunto escolhe uma delas. Mas a gente é múltipla, não dá pra restringir”, afirmam.
Conheceram-se no Blog Mural, site criado em 2010 para fazer a cobertura da periferia evitando os estereótipos com que os moradores das bordas da metrópole são tratados pela velha mídia. Mas foi justamente num veículo dessa mídia que o grupo se lançou, ao ter seu artigo “Nós, mulheres da periferia” publicado no na seção Tendências/Debates da Folha de S. Paulo na semana do Dia Internacional da Mulher de 2012. “Um texto baseado unicamente em nossa experiência, vivência, cotidiano”, e escrito a partir do estímulo da editora do blog, Izabela Mói, “até hoje nossa madrinha”.
A repercussão surpreendeu: o artigo foi citado em saraus da periferia, marcado em posts, receberam cartas… Perceberam então o tamanho do buraco na representatividade dessas mulheres, que vieram preencher. “Entendemos que conhecer o funcionamento da mídia, sermos mulheres, jornalistas e periféricas nos trazia a partir dali um desafio e o compromisso: ocuparmos o vazio latente que o primeiro artigo nos comprovou existir”, considera Semayat Oliveira em entrevista à revista Forum.
Mais um ano até que se organizassem num coletivo e outro para construírem o site e lançarem o grupo, na Ação Educativa, em meados de 2014. “O quanto somos pretas” foi outro texto com que marcaram essa fase de sua trajetória.
Já então eram frequentemente chamadas a dar entrevistas, participar de debates, produzir conteúdo. “Ocupar os lugares de fala”, como afirmam. Acabavam de realizar a campanha #eumulherdaperiferia pelas redes sociais, que rendeu outro belo texto.
“Descobrimos que tem mais mulher subindo a rua correndo depois das 22h. Que sua mãe não inventou a ideia de te esperar no ponto de ônibus. Que não somos a única contorcionista do ônibus em horário de pico.”
“Que tem muito mais mulher poeta do que imaginamos na quebrada. Mulher puxando samba em roda de bamba no bar ao lado. Que falar o real nome do bairro onde moramos não é problema algum. Admiramos as tias sentadas em frente de casa conversando. Falando alto na busca por moradia, saúde, educação.”
Uma googleada no nome do coletivo é o suficiente para vê-las surgir no Outras Palavras, Carta Capital, Forum, SP Cultura, revista Serafina,Jornal Futura, Rebelião Jornalística e ainda, ao realizarem a instalação QUEM SOMOS [POR NÓS], pelas emissoras de tevê SP TV, TV Gazeta, TVT e TV Brasil.
A exposição, que abriu em 21 de novembro e foi até 17 de dezembro passado no Centro Cultural da Juventude, Vila Nova Cachoeirinha (ZN), foi até aqui o ponto alto da missão que se atribuíram de dar voz às mulheres da periferia. “A gente não tem ideia do que é capaz. Não sabíamos como fazer, mas acabamos por nos tornar oficineiras, curadoras da exposição.”
Realizada com recursos do VAI (Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais), da prefeitura de São Paulo, a instalação “usa a fala das mulheres como elemento artístico” e foi criada de forma coletiva durante oficinas realizadas em diferentes bairros das periferias de São Paulo.
“Propusemos oficinas sobre mídia e mulher da periferia, em seis regiões. Levávamos trechos de novelas, capa de revista, jornal pra debater com as mulheres, em grupos entre 15 e 40 mulheres, dos 17 aos 90 anos. Queríamos saber como se veem, e muitas vezes era diferente do que imaginávamos. Veem-se com muita garra, muito trabalho, mas não se consideram vítimas, embora sejam retratadas como tal. O mais incrível foi no dia da exposição, quando olhavam as próprias imagens exibidas, e se sentiam importantes. Essas mulheres nunca tinham tido um espaço de reflexão de forma amorosa.”
São narrativas femininas que vão do Campo Limpo a Perus e Guaianases. “Ser mulher na periferia, uma mulher negra, é sempre estar armada, com uma voz extremamente firme, se impondo pra ser respeitada. Porque com sorriso entende-se que a gente está fácil, querendo dar.” Essa é a fala de Manoela Gonçalves, criadora da Casa das Crioulas, moradora de Perus (Zona Norte).
“A gente sofre muito preconceito e discriminação, e isso é muito difícil de ser combatido pela gente, que mora na periferia. Porque até nós falamos ‘ah, só podia ser da Zona Leste, só podia ser de baianases, quase sempre de forma pejorativa’.”
Desta vez, elas foram para o centro do debate. Juntamente com coletivos que usam o grafite, a pintura, a poesia, a dança, o Nós, mulheres da periferia vem concorrendo para que as bordas da cidade, sempre silenciadas, se façam ouvir. Quando discute feminismo negro e periférico, já não é mais possível para a grande mídia deixar de escutá-las. Reportagens nas revistas Marie Claire e Época, e no Estadão, que elas trazem à mão, confirmam. “Nosso papel é levar consciência, porque esse discurso feminista não chega na periferia. A gente desbravou esse espaço, pois ele igualmente não chegou até nós. Quando a gente dá voz a uma mulher invisibilizada, isso é feminismo.”
Afinado com os novos tempos, o filme “Que horas ela volta”, de Anna Muylaert – premiado nos festivais de Sundance e Berlim e indicado a representar o Brasil no Oscar – tem como protagonistas uma empregada doméstica e sua filha, que almeja uma carreira universitária. O texto de Jéssica Moreira, do Nós, relatando a visão que tiveram do filme, ela e sua mãe, empregada doméstica que, como a protagonista, trabalhou a vida inteira para que ela pudesse estudar, bombou nas redes sociais. A coincidência dos nomes, o dela e o da filha, foi o toque mágico de realismo.
“Foi um ano de crescimento”, consideram, ao falar do trabalho que resultou na exposição. “Aprendemos muito, pois são realidades muito diversas. Nossa geração atravessou a ponte, fez universidade, e com isso a gente muitas vezes não consegue pisar o próprio território. Foi muito bom nos dedicarmos a conhecer essas mulheres, ir lá, estar na fonte.”
Agora, acabam de ser premiadas em edital de mídias livres do Ministério da Cultura. “Estamos top no rolê”, diz alguém, e rimos muito. “Com o prêmio vamos reformular o site, reinvestir no coletivo. Talvez comprar câmeras, não usamos nem 10% do material gravado para a exposição, pensamos fazer um documentário. Vamos voltar nosso olhar para as mulheres não organizadas da periferia, voltar pra base. Se o pé não estiver no território, nossa fala não vai representar ninguém. Os movimentos sociais e sindicais falam para convertidos, queremos olhar para mulheres que não têm esse discurso.”
O coletivo foi o primeiro a entrevistar as secundaristas que recentemente ocuparam suas escolas (aqui e aqui). “Dá muita alegria à gente, que estudou em escola pública da periferia, ver meninas na linha de frente, os meninos querendo ter feminismo na escola! Talvez amanhã terão, apesar da questão de gênero ter sido excluída do Plano Municipal de Educação.”
“Tínhamos de falar disso, garantir que não fosse negligenciado. Os jovens reconhecendo o seu território, ainda que só o território da escola, e trazendo isso para a educação. Não vai voltar a ser o que era, vão exigir gestão democrática. A escola é um lugar de dominação, para disciplinar, mas a educação é para libertar. Essa é a maior herança que vão deixar.”
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Fonte: Outras Palavras.