Naomi Klein: a defesa da Terra é pós-capitalista

Estado de Emergência: Em 29/11, em Paris, governo francês usa poderes que assumiu em nome da “guerra ao terrorismo” para reprimir manifestação que pedia medidas contra aquecimento global.

Ativista-intelectual sustenta: para frear mudança climática, todas as atitudes pessoais têm valor. Mas elas só serão efetivas com mudança no modo de produção e consumo.

Por Bill Lueders.*

Entrevista com Naomi Klein.

Naomi Klein talvez seja a pessoa mais esperançosa na face da terra. A despeito de sua aterradora avaliação sobre as consequências das mudanças climáticas globais, a maioria delas inevitável, em seu livro de 2014 This Changes Everything: Capitalism vs. the Climate(Isso Muda Tudo: Capitalismo versus Clima) a escritora e ativista canadense acredita na capacidade dos humanos em mudar o curso das coisas.

“As mudanças climáticas não são uma ‘questão’ a ser somada à lista de coisas com as quais se preocupar, ao lado de creches e impostos”, escreve Klein. “São antes a convocação para um despertar civilizacional. Uma mensagem poderosa – falada na linguagem de incêndios, enchentes, secas e extinção –, dizendo que precisamos de um modelo econômico inteiramente novo e uma nova maneira de partilhar este planeta. Dizendo que temos de evoluir.”

Colaboradora de publicações como The Nation e The Progressive, e autora de livros que incluem A Doutrina de Choque, sobre como interesses poderosos usam um conjunto de crises conectadas para abrir caminho, Klein não é poliana ao dimensionar a enormidade do desafio. Ele propõe, entre outras coisas, tramar “a extinção das mais ricas e poderosas indústrias que o mundo jamais conheceu – as indústrias de petróleo e de gás.” Mas sua receita é até mais ambiciosa: “A solução para o aquecimento global não é consertar o mundo, é nos consertar a nós mesmos.”

Klein argumenta que os humanos podem vir a recriar o mundo e a natureza de seu relacionamento com ele porque necessitam disso. Seu livro foi chamado no The New York Times de “o mais sério e consciente sobre meio ambiente desde Primavera Silenciosa” e o “primeiro livro verdadeiramente honesto já escrito sobre as mudanças climáticas”, na revista Time. E agora é assunto de um documentário que o acompanha, também denominado This Changes Everything, que Klein está divulgando em viagens pelo mundo. (Para informações sobre exibição, veja o site do filme).

Conversei com Klein pelo telefone em meados de outubro, quando ela estava em Seattle, acompanhando uma projeção. Falamos sobre seu livro, seu otimismo qualificado, seus pensamentos sobre o papa Francisco e o presidente Obama, sua visão sobre como a humanidade pode mudar, e mais.

Naomi: “Ações individuais importam — por provarem que as coisas que necessitamos fazer para baixar nossas emissões melhoram nossa qualidade de vida. Mas não são um substituto para o trabalho político.”

Seu livro apresenta dois futuros possíveis: ou a humanidade rompe de modo dramático com práticas passadas, especialmente a adesão ao sistema econômico capitalista, ou tendemos inevitavelmente a uma catástrofe sem paralelos. Considerando que nossa estrutura social e política está profundamente comprometida com os ditames do capitalismo, este último cenário não seria mais provável?

Sim. (Risos.) Não defendo a ideia de que as probabilidades estão a nosso favor. Argumento que a aposta é tão alta, que temos uma responsabilidade moral sem precedentes de fazer todo o possível para aumentar nossas chances. E considero que há mais espaço para debater os custos do capitalismo do que em qualquer outro momento da minha vida. Isso foi até tema do primeiro debate dos candidatos do Partido Democrata à presidência dos EUA. Há alguns sinais reais de mudança, desde as eleições na Grécia e a eleição de Jeremy Corbyn como líder do Partido Trabalhista britânico, até a campanha de Bernie Sanders à Casa Branca e as iniciativas do papa Francisco. Penso que, se se tratasse apenas das mudanças climáticas, não teríamos chance. Mas o fato de que este modelo econômico está esmagando as pessoas em tantas frentes simultaneamente cria o potencial para um tipo de política de coalizão que é avalizada pela ciência; e que usa os prazos definidos pela ciência em relação às mudanças climáticas para agir com ousadia e rapidez. Mas, se eu fosse apostar, não apostaria a nosso favor, não.

Você sugere que o problema real por trás das mudanças climáticas não é a natureza humana, nem mesmo os gases de efeito estufa – mas uma história que vimos contando a nós mesmos nos últimos 400 anos. Você poderia elaborar isso?

As mudanças climáticas são, entre outras coisas, uma crise de narrativa. E essa narrativa nasceu nos anos 1600, sustentada pela visão de Francis Bacon e René Descartes. Eles tinham a ideia, revolucionária naquele tempo, de que a Terra não era um sistema vivo, uma mãe a ser reverenciada e temida, mas, ao contrário, uma coisa inerte que poderia ser inteiramente conhecida e da qual se poderia extrair riquezas indefinidamente.

Mas a ideia de que poderíamos dominar a natureza e agir sem pensar nas consequências entrou em colapso com as mudanças climáticas. O aquecimento global nos coloca, os seres humanos, em nosso lugar, de maneira profundamente perturbadora para uma visão de mundo baseada na dominação. Mas é algo a ser abraçado, se você tem uma visão de mundo baseada em interconexão. É o que a maioria dos cientistas tem, cada vez mais.

Você observa que as mudanças climáticas afetarão os países pobres desproporcionalmente e forçarão um êxodo maciço de pessoas de países-ilhas e nações da África sub-saariana. A partir daí, pergunta: “Como trataremos os refugiados das mudanças climáticas que chegarem em nossos portos em botes precários”? A atual onda anti-imigrantes na Hungria – ou entre os candidatos à presidência dos EUA pelo Partido Republicano – sugere uma resposta?

Quando pensamos num futuro mais quente, não se trata apenas do calor, da seca, das tempestades. Tem a ver com as sociedades tornando-se mais mesquinhas, porque esta é a lógica capitalista diante da escassez: o-vencedor-leva-tudo. Estamos vendo exatamente isso, na crise dos refugiados. Essa crise tem suas raízes em guerras por recursos naturais, nas quais o acesso a combustíveis fósseis teve papel central. E um dos aceleradores do conflito civil na Síria foram as mudanças climáticas. A Síria viveu uma seca recorde nos últimos anos, o que levou a uma explosão de violência.

Estamos vendo o melhor e o pior de que são capazes os humanos. Os seres humanos somos complexos. Somos egoístas, gananciosos, racistas, horrendos e belos, cheios de solidariedade e compaixão – tudo ao mesmo tempo. Sistemas diferentes ativam diferentes partes de nós. Por isso, viramos as costas à crise dos refugiados, que o Ocidente teve grande papel em criar. Mas vemos também atos de generosidade tremendos – milhares de pessoas na Islândia e na Alemanha abrindo suas casas, e comunidades organizando-se para amparar refugiados.

Precisamos reconhecer essa complexidade e pensar quais sistemas trazem à tona nosso melhor e nosso pior self. Porque isso irá determinar como respondemos a essa crise.

Uma das partes mais devastadoras do seu livro é quando expõe a tremenda insensatez da ideia de que a inovação humana encontrará um modo de capturar todos os  gases de efeito estufa. Mas a tecnologia não terá de ser parte da resposta, e o mercado não poderá ajudar nesse processo?

A tecnologia é parte da solução, e o fato de o preço da energia solar ter baixado cerca de 95% nos últimos seis anos, a ponto de estar equivalendo ao dos combustíveis fósseis em vários grandes mercados, é parte do que torna essa ideia esperançosa. As tecnologias melhoram o tempo todo. Isso se deve a uma combinação de fatores, não apenas ao mercado. A Alemanha investiu bilhões em pesquisa e desenvolvimento, de que estamos nos beneficiando agora. Mas o mercado também teve um papel. Penso que o perigo surge quando dizemos a nós mesmos que o mercado, ou a tecnologia, irão resolver o problema por nós; e podemos simplesmente relaxar.

Numa comunicação que fez no College of the Atlantic, você disse: “A dura verdade é que a resposta à questão ‘o que eu posso, como indivíduo, fazer para deter as mudanças climáticas’ é: nada”. Explique o que quis dizer com isso.

Parte do que combatemos é o triunfo da lógica do mercado – essa ideia de que nosso maior poder é o de consumidores. Definitivamente, há coisas que você pode fazer como indivíduo para minimizar sua contribuição ao problema. Você pode parar de comer carne, pode parar de viajar de avião, pode fazer da sua vida um experimento em baixo-carbono, se quiser. Mas, como indivíduos, tais atos não dão a partida para a transformação da economia global de que estamos falando.

Ações individuais importam, por nos provarem que as coisas que necessitamos fazer para baixar nossas emissões melhoram nossa qualidade de vida – nos tornam mais saudáveis, mais felizes. Isso cria um exemplo para outros e alimenta nosso trabalho político. Mas não é um substituto para o trabalho político.

Você foi convidada pelo Vaticano para discutir a encíclica das mudanças climáticas do papa Francisco, que chega essencialmente à mesma conclusão que chegamos, de que responder às mudanças climáticas requer mudanças fundamentais em nosso modelo econômico capitalista e consumista. Que diferença faz que o papa Francisco tenha assumido essa causa? Não seriam os católicos bastante espertos para ignorar os ensinamentos e as posições da igreja?

Eles são, mas penso que esse papa é um líder transformador, de modo que ele é mais difícil de ignorar, talvez, que o papa Bento XVI. Eu sempre estimulei as pessoas a ler a encíclica, independentemente de sua fé ou falta dela. Sou uma feminista secular e considero-a um documento profundamente inspirador, muito bem escrito. E olhe para o modo como as pessoas reagiram ao papa Francisco em sua visita aos Estados Unidos. Você viu sua habilidade em tocar as pessoas. Penso que ele está usando seu poder e plataforma de modo extremamente inspirador.

Você foi criticada por Katha Pollitt por não ver o “ponto cego” do papa – a adesão da igreja à desigualdade de gênero e sua oposição à contracepção, ainda que a superpopulação certamente colabore para enfrentar o problema das mudanças climáticas. A igreja católica não seria parte do problema?

Antes de mais nada, não é verdade que não vejo os pontos cegos. Eu me apresentei bem abertamente como feminista quando estava no Vaticano. Quando escrevi meu livro, debati se era o caso de argumentar que as liberdades reprodutivas das mulheres eram parte da batalha contra as mudanças climáticas. E o que ouvi [de outras feministas] foi muita dúvida sobre a instrumentalização dos direitos reprodutivos com o objetivo de gerar ação sobre as mudanças climáticas.

Numa sociedade patriarcal, se você disser que precisamos controlar a população para enfrentar as mudanças climáticas, terá de lidar com muitos precedentes de situações em que mulheres negras, ou indianas, são particularmente atingidas por campanhas de esterilização em massa. Acredito fortemente no direito de escolha das mulheres, e no direito à contracepção. Mas não acredito nisso por causa das mudanças climáticas; acredito porque acredito. Penso que esses direitos deveriam ser defendidos por seus próprios méritos. Também acredito que o controle populacional é frequentemente um modo de mudar de assunto, dos hábitos de consumo dos ricos, em sua maior parte pessoas brancas, para os hábitos de procriação dos pobres, em sua maioria pessoas negras e mestiças. É um modo de tirar nosso pescoço da forca. Se você olha os números, o maior crescimento populacional e as taxas de natalidade mais altas ocorrem em partes do mundo com as emissões mais baixas. O que impulsiona o crescimento das emissões é o consumo ao estilo do Ocidente.

Como você avalia o presidente Obama quanto ao enfrentamento das mudanças climáticas?

Nos últimos seis meses, temos visto mais liderança do que durante toda a sua presidência. É muito pouco, e muito tarde. As reduções de emissão de CO² que ele propõe não estão de modo algum próximas do que devem ser. Como presidente, ele abriu vastos novos territórios para a extração de combustíveis fósseis, incluindo terras públicas que não deveria abrir. Penso que a decisão de permitir que a Shell perfurasse no Ártico foi desastrosa. Podemos ficar tremendamente agradecidos porque a empresa, em grande parte por causa dos danos que estava causando a sua imagem, ao ativismo e ao preço do petróleo,  decidiu que a atividade não vale a pena por enquanto.

Penso que as restrições impostas pelo governo Obama reduziram a velocidade da exploração, mas teria sido tão mais significativo simplesmente dizer não. No momento em que as companhias de combustíveis fósseis têm cinco vezes mais carbono em suas reservas, precisamos que líderes políticos digam: “Você precisa deixá-lo no solo.”

Por um breve momento, alguns anos atrás, parecia que dar alguns passos no sentido de enfrentar as mudanças climáticas poderia ser uma área de acordo bipartite, nos EUA. Agora parece que os republicanos, incluindo os que estão concorrendo à presidência, tentam desqualificar a iniciativa como – para citar Chris Christie – “uma ideia da esquerda selvagem”. Como esse assunto pode ser tão deturpado na política partidária?

Os republicanos entendem que fazer o que precisamos fazer em face das mudanças climáticas é absolutamente antiético para seu projeto político. Se você não acredita em governo, se não acredita em tributar corporações ou os muito ricos, se não acredita que há lugar para a ação coletiva, então não haverá uma resposta para as mudanças climáticas. E mesmo quando você tem os chamados esforços bipartidários a partir de gente como Bob Inglis [ex-congressista republicano da Carolina do Sul], que apoia um imposto sobre receitas de carbono, compensadas por reduções de impostos de renda e corporativos, não é muito melhor do que a negação, porque isso não faria nada para resolver o problema.

De modo que o meu argumento é de que precisamos mudar a ideologia do país; esse é o projeto. A direita foi bem sucedida nisso com Reagan e Thatcher. Eles moveram o polo da política para a direita de forma dramática. E não vamos a lugar nenhum até que movimentemos o polo na outra direção.

Bill Lueders é editor associado do The Progressive.

Fonte: Outras Palavras

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