Por Miguel Martins.
Em seu texto de apresentação da exposição Histórias da Sexualidade, aberta ao público a partir desta sexta-feira 20, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) adota um tom assertivo para defender a mostra de possíveis ataques.
Quando a instituição menciona episódios recentes ocorridos no Brasil e no mundo que trouxeram à tona “questões relativas à sexualidade e aos limites entre direitos individuais e liberdade de expressão”, subentende-se a fúria despertada em parte da classe média por uma mostra LGBT e uma performance no Museu de Arte Moderna de São Paulo.
O Movimento Brasil Livre, catalisador da revolta contra as atrações artísticas, atacou a primeira pela ausência de uma classificação indicativa e pelo uso de recursos públicos da Lei Rouanet para expor obras que estimulavam, segundo a organização, a zoofilia e a pedofilia. No caso da performance, o grupo fez campanha contra o MAM após uma menina ser filmada acompanhada da mãe enquanto tocava no pé do bailarino Wagner Schwartz, que se apresentava nu.
Concebida há dois anos, Histórias da Sexualidade reúne 300 obras em diversos núcleos temáticos, entre eles jogos sexuais, voyeurismos e, como não podia faltar, corpos nus. Em sua página no Facebook, o MBL deu sinais de que não fará grande barulho contra a mostra.
O movimento reproduziu um texto do site Ceticismo Político, uma de suas fontes frequentes, com o título “Masp recua e não vai exibir exposição pornô para crianças”, em referencia ao fato de o museu ter adotado a classificação indicativa de 18 anos. Na publicação, a organização reproduziu o texto do site: “Se não tiver exposição para crianças e se não tiver dinheiro da Lei Rouanet, essa mostra entra na categoria ‘não fede nem cheira”.
Nesse caso, a indiferença pode ser mais sintomática que a fúria. O movimento trata com desprezo uma mostra que reúne obras de Francis Bacon, Edgar Degas, Édouard Manet, Pablo Picasso e Paul Gauguin, nomes presentes em qualquer simplório manual de história da arte. Se “não fede, nem cheira”, não se trata apenas das supostas depravações serem financiadas com recursos públicos ou disponíveis ao acesso das crianças. Os episódios recentes demonstram que própria arte não parece ter grande valor para uma parte significativa da classe media.
Não se trata de um fenômeno local. O jornalista norte-americano Scott Timberg já havia diagnosticado no livro Culture Crash (a Crise da Cultura, em tradução livre) a separação violenta entre a classe artística e a classe média nos Estados Unidos, pouco antes de a eleição de Donald Trump confirmar o divórcio.
O livro busca analisar os impactos da Crise de 2008 sobre a cadeia produtiva da cultura norte-americana. Fechamento de casas de shows e bares, de pequenas livrarias locais, de cinemas antigos, um fenômeno relacionado à gentrificação dos centros urbanos, somaram-se a demissões de jornalistas culturais das principais redações, caso de Timberg.
Na outra ponta, a reformulação protagonizada por grandes players como Apple, Google e Netflix, que dominam grande parte do atual mercado cultural, desempregou inúmeros vendedores de discos, “roadies”, curadores, entre tantos intermediários fundamentais para a sobrevivência e a difusão da classe artística. O autor defende que há uma grande concentração de capital cultural que estimula o desinteresse crescente por manifestações de vanguarda ou até mesmo pela história da arte.
Em seu capítulo final, Timberg faz uma interessante reflexão sobre os motivos para a arte “não feder nem cheirar” para grande parte da classe média. O autor recupera o termo middlebrow, um conceito cunhado nos 1920 sobre a cultura de uma parte da sociedade que está disposta a pequenos esforços intelectuais e procura conhecimento sobre arte como forma de prestígio.
Embora ridicularizada por intelectuais e artistas, essa parcela da sociedade, diz Timberg, tinha um importante papel para a cultura. Ela garantia a formação de um mercado próprio, voltado a difundir a arte e sua história de modo palatável, em forma de revistas, manuais de arte e documentários televisivos.
Timberg sugere que é dever da classe artística e cultural aproximar-se dessa camada intermediária da população. E isso não significa ser comercial. “Significa despertar a paixão nos estudantes de escolas e universidades. Significa a mídia conectar-se a algo além de ‘transgressão’ e luxo. Significa acadêmicos se importando com o destino de seus discursos para além dos muros da instituição”, escreve.
A reflexão de Timberg torna-se ainda mais aguda sob o ângulo brasileiro. Embora os recentes ataques à liberdade artística, inclusive com violência física, sejam condenáveis, os episódios permitem àqueles que trabalham com cultura uma reflexão sobre sua dificuldade em dialogar com uma grande parte das camadas intermediárias, cada vez menos abertas à alteridade.
“Para fazer as coisas funcionarem novamente, a classe criativa precisa reconhecer que é parte da classe média, e precisamos lutar pela sobrevivência de ambas”, afirma Timberg a CartaCapital. O autor lembra que as escolas nos EUA têm cortado artes e cultura de sua grade, uma realidade comum no Brasil. “As sociedades decidem o que é importante para elas, e em grande parte do mundo a cultura tem sido abandonada.”
O livro de Timberg ajuda a explicar por que o financiamento de projetos pela Lei Rouanet é alvo da ira de tantos brasileiros: há grande desinteresse por espetáculos e mostras. Uma pesquisa da Fecomércio-RJ do ano passado indicou que 56% frequentaram pelo menos uma atividade cultural nos últimos 12 meses, ou seja, o restante não foi a uma exposição, show ou peça sequer. Na ocasião, a televisão foi mencionada como principal programa cultural.
É provável que as redes sociais já desempenhem papel quase ou tão importante no tempo livre dos brasileiros, um espaço onde a arte para muitos realmente “não fede, nem cheira”. Timberg chega a propor, em uma formulação semelhante à do economista Thomas Piketty, uma revisão na tributação para incentivar a reinvenção do ensino da arte nas escolas e universidades norte-americanas e aumentar o investimento em espaços públicos para sua difusão.
É certamente um pensamento utópico para o Brasil atual, que sequer consegue ter impostos sobre fortunas e heranças próximos da média mundial. Também não encontraria ressonância alguma entre aqueles que defendem o fim dos incentivos fiscais da cultura, mas não propõem alternativas para seu financiamento.
O divórcio entre a arte de vanguarda e a classe média talvez seja passageiro, mas ele jamais revelou-se tão presente. Para superar essa falta de comunicação, cabe aos artistas e intermediários culturais também se mobilizarem para suas mensagens, vanguardistas ou comerciais, superarem os limites de seus próprios muros.
Fonte: CartaCapital