Não era pra ser João Fera o Quarto Paralamas? Outro caso de racismo estrutural? Por Flávio Carvalho.

or Flávio Carvalho.

“Quando tá escuro e ninguém te ouve…
Uma noite longa para uma vida curta, mas já não importa, basta poder te ajudar”
(Lanterna dos Afogados, canção de Herbert Vianna, inspirada em Jubiabá, de Jorge Amado;
sobre um local de Salvador, Bahia, ponto de encontro de gente marginalizada)

Nunca foi somente questão de gosto musical.
Eu sempre gostei muito desse grupo, Paralamas, e das pessoas que o compõem, independentemente de serem boas pessoas, por sua excelente qualidade musical.

E olha que há tanta boa música no mundo que eu sou daqueles que não insistem em ficar escutando música de quem não gosto. Você tem o direito de seguir escutando o mau caráter que você quiser, tanto quanto eu tenho o de fazer exatamente o contrário. Mas, como eu disse, este texto nem é sobre isso. E eu realmente admiro muito os três integrantes principais do Paralamas.

Eu compreendo perfeitamente o silêncio (a respeito disso) de um dos seus músicos, o João Fera, que toca teclados nos Paralamas do Sucesso, faz muitos anos, estando no seu pleno direito de sentir-se bem (ou mal) com isso. Não é disso que se trata.

Assim como também não se trata do silêncio dos demais artistas que compõem esse grupo. Nem os desmerece. Basta de apontar comportamentos como se fossem individualizados, sem qualquer tipo de incidência social. Também não é só isso. Não me interpretem mal.

Estudei sociologia. E ganhei, com isso, essa estranha mania de analisar os fatos sociais mais pelas incidências coletivas do que pelas individuais.

Daí que, se é algo que faz 37 anos que um artista, dessa grandeza e dignidade, convive, eu tenho o direito, sim, de sentir-me (no mínimo) incomodado por todos esses anos que os acompanho.

Ocorre que eu descobri, na Internet, um livro que trata do (atenção!) Quarto Paralamas.
Se refere ao empresário-produtor do grupo Paralamas do Sucesso, que animou toda a minha juventude.
Uma pessoa que merece todo o respeito por estar na sombra, atuando nos bastidores, para o sucesso do grupo musical.
Quem aqui é doido de se colocar contra isso?
Pois também não é disso que eu pretendo falar.

E sim do João Fera, o dos teclados maravilhosos que compõem, segundo os próprios Paralamas, “a base musical, fundamental, de enorme parte de todas as músicas”? Não é ele, João, O Quarto Paralamas? Ou pelo menos O Quinto? Porque NUNCA aparece na capa dos discos nem nas fotos promocionais que destacam todos os anos de carreira desse (insisto: maravilhoso!) grupo? Quando é que (não ele, João, que nunca exigiu isso) aparecerá alguém do próprio grupo para fazer essa reparação histórica e dar-lhe, ao virtuoso músico este pleno reconhecimento? Que os grandes empresários das grandes gravadoras e empresas de marketing passassem por cima disso, em nada me espanta. Mas, e os outros?

É só mais um detalhe mimimizento, meu (não dele) a cor da sua pele, do João? É só isso mesmo, uma mera questão de pele?

Coincidência. Já reparou?

Renato Rocha. Baixista da Legião Urbana. Um grupo que ganhou o estrelato exatamente (entre outros imensos méritos) pela força de um dos seus principais instrumentos: o contrabaixo (que até comparou-se, no início, ao contrabaixo do U2). Conhece a sua história, do Renato? Morreu mendigo, morador de rua. Era preto.

Billy Preston. Outro preto. Tocou teclados com os Stones e com Ray Charles, antes de “salvar” um grupo musical chamado The Beatles. Já viu o que dizem dele no documentário Get Back? Veja.

Johnny Alf. Desapareceram ele das fotos dos “Pais” da Bossa Nova. Jobim, Vinícius: brancos (como eu).
Ah, Alf era Gay, como Preston. Outro detalhe?

Alaíde Costa, Waltel Blanco (de quem Henry Mancini foi capaz de roubar até a música da Pantera Cor-de-rosa). Tantos grandes nomes…

Já conhece a história da Axé Music, daquele Estado brasileiro que tem o maior percentual de população afro-descendente, a Bahia? Porque a força histórica daquela música negra só conquistou os primeiros méritos do Show-Business quando convidaram pessoas brancas para as interpretarem, de forma belíssima?

É preciso estar atento e forte, cantaram os tropicalistas.

Antirracismo só presta se for bem ativo. O resto é hipocrisia.

Aquele abraço.

@1flaviocarvalho, sociólogo e escritor.

Barcelona, 14 de fevereiro de 2024.

A opinião do/a/s autor/a/s não representa necessariamente a opinião de Desacato.info.

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