Pesquisadora estadunidense publica livro sobre o impacto da leitura digital na nossa capacidade de interpretação de textos, cognição e concentração.
A entrevista é de André Cáceres, publicada por O Estado de S. Paulo, 29-06-2019.
Quem lê com atenção a passagem do romance Anna Kariênina, de Liev Tolstoi, em que a protagonista comete suicídio, não passa incólume por essa experiência. “Os mesmos neurônios que você utiliza quando mexe as pernas e o tronco são ativados também quando você lê que Anna se jogou na frente do trem”, descreve a neurocientista cognitiva e pesquisadora da leitura Maryanne Wolf, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, em seu livro O Cérebro no Mundo Digital, lançado no Brasil pela editora Contexto. “Uma grande parte de seu cérebro foi ativada tanto pela empatia ante o desespero visceral da personagem, quanto pela ação motora de neurônios-espelho interpretando esse desespero. Quem leu essa passagem no romance de Tolstoi também se jogou.” No entanto, Wolf argumenta que somente quem leu atentamente passou por esse processo mental – e estamos perdendo a capacidade de imergir dessa forma nos livros.
Seres humanos não nasceram para ler. A leitura é uma das aquisições evolutivas mais importantes do Homo sapiens, e uma característica única na natureza, que implicou em um processo de mudança da estrutura e das conexões do cérebro. Tanto que, em analfabetos, “a maior parte dos grupos de trabalho neuronais que usamos hoje para as letras e palavras são amplamente associados a tarefas visualmente semelhantes, mas funcionalmente diferentes, como a identificação de objetos ou rostos”, de acordo com Wolf.
A primeira carta de O Cérebro no Mundo Digital (o livro é dividido em epístolas e escrito com a linguagem intimista de um diálogo da autora com o leitor) se dedica a explicar didaticamente como funciona o circuito da leitura no cérebro para, nas outras cartas, detalhar como a leitura em telas de computadores, celulares, tablets – e até mesmo e-readers projetados especificamente para isso – vem perturbando esse processo intrincado e reduzindo nossa capacidade cognitiva de imergir em um texto. “A qualidade de nossa leitura não é somente um índice da qualidade de nosso pensamento, é o melhor meio que conhecemos para abrir novos caminhos na evolução cerebral de nossa espécie. Há muito em jogo no desenvolvimento do cérebro leitor e nas rápidas mudanças que caracterizam atualmente suas sucessivas evoluções.”
A escrita – e, portanto, a leitura – é uma das mais poderosas ferramentas que a humanidade já concebeu. No também recente O Mundo da Escrita (Companhia das Letras), o crítico Martin Puchner mostra como ela foi sinônimo de poder ao longo dos milênios. “Os sacerdotes indianos se recusavam a escrever as histórias sagradas por medo de perder o controle sobre elas, sentimento compartilhado pelos bardos da África Ocidental, que viveram 2 mil anos depois, quase do outro lado do mundo. Os escribas egípcios adotaram a escrita, mas tentaram mantê-la em segredo, com a esperança de reservar o poder da literatura para si mesmos.” Ele perpassa a história da civilização para evidenciar como a escrita transformou o mundo irremediavelmente – até chegar à era da internet.
Os livros de Puchner e Wolf revelam, juntos, um amplo panorama do passado e um assombroso prognóstico do futuro da leitura. E ambos compartilham uma preocupação em comum: que essa ferramenta tão valiosa esteja em risco graças ao progresso tecnológico. Não que as pessoas não estejam lendo: Wolf mostra que um estadunidense médio lê, por dia, uma quantidade de palavras equivalente à de um romance curto. “Infelizmente, é raro que essa leitura seja contínua, constante ou concentrada”, lamenta.
As telas digitais, de acordo com Wolf, oferecem obstáculos muito mais severos que o papel para alcançar a concentração, como a iluminação, a disputa pela atenção do usuário e a poluição sinestésica. E não são apenas os leitores em formação que sofrem: ao se submeter aos próprios testes, ela identificou em si mesma uma perda na capacidade de imersão.
A autora relaciona, por meio de outros estudos, essa defasagem na qualidade da leitura à perda da capacidade de interpretação de texto e, por conseguinte, ao empobrecimento do pensamento crítico e até à redução coletiva da empatia. As sequelas para a sociedade, segundo ela, vão muito além de crises no mercado editorial, tendo efeitos práticos – e políticos – preocupantes.
Eis a entrevista.
Como a leitura rasa pode afetar fisicamente a formação do cérebro a longo prazo?
A atenção inicia o resto do que acontecerá no circuito leitor. Se você está parcialmente atento, o circuito não funciona de modo ideal. Por exemplo, há uma relação entre atenção e memória. Quando você não está atento, não consolida a informação de modo que a lembre. Se não há essa consolidação, você não tem como fazer analogias, porque o cérebro está sempre comparando o que já sabe com informações novas. Se você lê com atenção parcial, não será capaz de inferir o que é verdade e fica mais vulnerável às informações falsas, menos capaz de ler crítica e analiticamente.
Um leitor experiente também pode perder sua habilidade?
Eu testei a mim mesma e foi realmente frustrante descobrir que eu estava me tornando cognitivamente impaciente, e com essa impaciência eu não conseguia ficar tão facilmente imersa em minha leitura. Então temos de tomar cuidado.
O que mais impacta a qualidade da leitura: a mídia ou o ambiente ao redor?
O principal impacto é o que você está conscientemente optando por fazer. Seja em um café lotado ou no conforto da sua casa, se seu propósito é realmente ir o mais profundo que puder, essa será sua prioridade. Mas nossa atenção pode ser facilmente distraída. Quando você está em um ônibus ou no metrô, pode mergulhar numa leitura profunda, mas é menos fácil de fazê-lo.
Quando a senhora afirma que a leitura profunda é mais difícil de ser alcançada por meio de telas, também se refere a dispositivos específicos para leitura, como o Kindle?
Qualquer mídia tem suas vantagens e desvantagens, mas mesmo dentro do mesmo tipo há diferenças. Por exemplo, é diferente ler em uma página da internet, em um Kindle ou em seu celular. A realidade é que mesmo em um Kindle ainda há uma desvantagem em relação ao livro físico, para além dos aspectos sinestésico e tátil do papel. Dito isso, o Kindle é preferível a uma tela comum, no sentido de não oferecer a mesma competição pela atenção, o que aumenta a qualidade da concentração. As pesquisas ainda são incipientes, mas mostram que ele chega muito mais próximo do tipo de leitura profunda que queremos para os leitores. Porém há menos compreensão sobre a sequência das informações. Mas independentemente da mídia em que se lê, nós temos a habilidade de ler profundamente se esse for nosso propósito.
Como podemos usar a tecnologia para melhorar nossa leitura, já que não é possível regredir?
Muitas pessoas estão compreendendo que não podemos voltar atrás no progresso tecnológico. Então eu acredito que precisamos educar nossas crianças para que elas aprendam a ler profundamente em papel, mas que sejam ensinadas a ler conscientemente em telas com o máximo de propósito. Eu creio que possamos fazer isso. E acredito que há aspectos da tela que sejam muito benéficos. Trabalho com dislexia, e é maravilhoso que algumas de nossas crianças disléxicas possam usar as características das telas para ajudá-as a ler, aumentando as fontes ou o espaçamento entre as palavras. Há também empresas de tecnologia que estão tentando usar o conhecimento de pessoas como eu para aprimorar suas telas. Todos nós estamos em um momento de transição. Se eu puder aconselhar as pessoas, diria para ler o máximo possível em papel até que que surjam telas que permitam mais facilmente a leituraprofunda. Independente do quão dominantes as telas sejam em nossas vidas, não deixe que elas sejam tudo.