Por Viegas Fernandes da Costa.
Querida Naná, sei que tardo com esta carta, mas tenho certeza que entendes o ócio que nos toma nas férias. Escrevo-te da cidade percorrida pelos pés de Borges e Bergoglio, estes Jorges do mundo, e aqui ainda se respira a Copa do Mundo de Futebol. Por onde se anda, esbarramos com a imagem de Messi, Maradona, e a camisa da Seleção Argentina está onipresente. Preciso confessar, Naná, certa inveja ao ver as pessoas vestindo a camisa da seleção nacional e não sentir calafrios e náuseas. Já te disse, a canarinho foi destruída pelos fascistas, e ainda que o tempo seja capaz de curar muitas coisas, as imagens da barbárie estarão gravadas na memória nacional, tal qual por aqui são lembrados nas páginas da infâmia aqueles que operaram o terrorismo de Estado nos tempos da ditadura militar.
A propósito, Naná, ao caminharmos pelas ruas portenhas tropeçamos na memória da dor e do terror. A Argentina não esquece seus filhos e filhas torturados, assassinados e desaparecidos em nome de “Deus, pátria e família”. Seus nomes e histórias estão gravados nas calçadas, diante dos prédios em que trabalhavam quando foram sequestrados pelo Estado. Aqui, os bandidos de farda e coldre nunca foram anistiados.
Escrevo-te isto, Naná, e penso o quanto nós brasileiros precisamos aprender com os argentinos. Podemos perdoar pecados, mas jamais anistiar crimes de lesa humanidade, como este contra a nação Yanomãmi que agora nos escandaliza. Mas o mais duro é reconhecermos que todos somos responsáveis por este genocídio assinado por Bolsonaro, inclusive eu e você Naná. Todos sabíamos do garimpo ilegal, do mercúrio tornando cadáveres os rios amazônicos, das chacinas em aldeias indígenas e comunidades ribeirinhas. Mas precisamos ver os corpos esqueléticos dos yanomãmi na tela dos jornais nacionais para, enfim (e oxalá!), despertarmos da inércia. Que vergonha, Naná! Que vergonha!
Não pode haver anistia para os responsáveis pelo genocídio do povo Yanomami, Naná. Não pode! E o mais abjeto é saber que pessoas como Mourão, Moro, Damares e Salles, responsáveis diretos pela tragédia criminosa a que foram submetidos nossos irmãos indígenas, gozarão da tribuna e da imunidade parlamentar. Enquanto elegermos bandidos para legislar, Naná, nunca seremos um país de verdade. No máximo um ajuntamento, como já disse o poeta Affonso Romano de Sant’Anna.
Por outro lado, Naná, quero te contar algo de bom. Na segunda-feira Lula esteve na praça San Martín, aqui em Buenos Aires, e obviamente fui vê-lo. Minha amiga, não sou de chorar com político, mas não pude conter minha emoção. Como é importante termos um estadista na presidência! Lula é tratado pela imprensa da Argentina com muito respeito, e há também grande esperança que o Brasil volte a crescer. Se cresce a economia brasileira, cresce também a da Argentina, é o que ouço por aqui. Tomara, Naná. Tomara…
Ah, já quase me esquecia de te contar um fato curioso. Hoje um taxista me perguntou se eram verdadeiras as notícias sobre a poluição das praias catarinenses e a epidemia de diarreia em Florianópolis, ou se tudo não passava de um boato para desencorajar os argentinos de viajar para o Brasil (só na ilha de Santa Catarina são oitenta mil ‘hermanos’). Confirmei-lhe que as notícias eram verdadeiras, infelizmente, e ele fez uma expressão de desolação. Tinha interesse de passar férias na praia de Canasvieiras, mas diante da informação, iria repensar a decisão. Sim, Naná, o cocô nas nossas praias é notícia por aqui e teremos um turista a menos cambiando seus suados Pesos para mergulhar em nossas latrinas de grife.
Bem, por hoje é isto. Um forte abraço desde aqui da Calle Córdoba.
Teu amigo,
Viegas Fernandes da Costa.
Buenos Aires, 25 de janeiro de 2023.
#cartasparananá
Viegas Fernandes da Costa é docente e escritor.