Por Flávio Carvalho, para Desacato.info.
“Um rei velho e cansado, não queria o amor no seu reinado, pois sabia: não ia ser amado” (Azevedo).
Ato 1.
Parte significativa da plateia começava a vaiar Naná Vasconcelos, no Teatro Santa Isabel, em Pernambuco. Geraldo Azevedo entrou no palco de forma inusitada, sem disfarçar seu descontentamento. O cartaz do show anunciava ambos, Geraldo & Naná, incluindo o percussionista que foi considerado durante muitos anos um dos melhores do mundo (por uma importantíssima revista dos Estados Unidos, onde Naná morava). Impacientes, uma pequena parte barulhenta do público, vaiou um gigante da música brasileira: queriam exclusivamente o já então reconhecido Geraldo Azevedo.
No camarim, levei meu LP para Geraldo autografar. Chamava-se A Luz do Solo e foi o primeiro que eu comprei com meu primeiro salário. Geraldo não estava bem; certamente pelas vaias. Ainda chateado, sugeriu que Naná o autografasse. “Mas o disco não é meu”, tentou argumentar, modestamente, Naná. “Não importa, para mim; assine, por favor”, eu insisti. Naná autografou-me meu primeiro disco, de Geraldo Azevedo. Toda uma honra, para mim.
Eu, que também nem imaginava quem era Naná Vasconcelos (mas que já na abertura daquele show, aprendi a admirar), dei aquele disco de presente, tempos depois. Não por desprezo, mas para uma namorada que gostava muito mais de Geraldo do que eu (que também sempre o admirei). Aquela menina, fanática, guardava as sementes de uma maçã comida por Geraldo durante um show em Olinda. Eu nunca fui fanático. Eu adoro admirar.
Aprendi a amar, ainda mais, Geraldo e Naná.
Ato 2.
Faz pouco tempo, conheci em Barcelona duas senhoras peruanas que diziam que votariam na filha de Fujimori. Pelo ambiente de esquerdas em que estávamos (uma ocupação de imigrantes no coração da cidade), estranhei e as questionei. Uma disse que votaria porque gostava muito de Vargas Llosa; e este Prêmio Nobel de Literatura, abominavelmente de direitas, declarou, recentemente, apoio a Keiko Fuijimori. Insisti que eu nunca votaria na filha de um ditador e que me estranhava que elas sendo “progressistas”, não votassem na alternativa de esquerda. Quando uma delas saiu, abruptamente, a outra confessou que o seu pai havia sido torturado durante a ditadura de Fujimori. “Por Fujimori, sim?”, perguntei. Não. Pelos “terroristas”, disse ela: do Sendero Luminoso. O seu pai era militar defensor da ditadura e foi capturado pela guerrilha de esquerda; que resistia, armada, no meio da selva peruana.
Calei-me.
Ato 3.
Viajávamos a Machu Pichu, no Peru. Eu e a minha namorada. Chamava-se Carolina. Musicista, ela, como Azevedo. Geraldo estava no corredor do avião, que havia acabado de decolar, no Rio de Janeiro. Admirados, fomos conversar com ele, e estranhei que Geraldo já começasse a fazer alongamentos, quando ainda nos restavam muitas horas de voo. Ensinou-me duas coisas. A alongar-se por antecipação, quanto antes melhor (segundo o artista). E a alongar-me bem, em exercícios muito práticos, que até hoje nunca esqueço. E os pratico, não somente em aviões.
De tão simpático, o pernambucano, sertanejo, de Jatobá, marcou-me pela humildade em quase tudo que expressava. Fala manso, como se não quisesse convencer ninguém de nada.
Lá no céu do Brasil, mencionei o incidente no Teatro Santa Isabel, com Naná. Pediu-me sinceras desculpas por não haver estado em condições de autografar-me aquele disco, muito importante para mim. “Não importa, Geraldo: a história é mais importante que o autógrafo”.
E foi então que ele concluiu nossa boa conversa com uma frase que nunca me saiu da cabeça:
– Foi um dos piores dias da minha vida, aquele no Teatro de Santa Isabel.
De repente, olhou para o teto do avião, parou por uns segundos, e sentenciou com outra frase, menos forte, que somente agora – assistindo esse vídeo de sua entrevista no programa de Jô Soares, falando das torturas que sofreu, nos porões da ditadura militar brasileira – percebi melhor, em toda a sua intensidade.
– Houve dias piores na minha vida, sim; mas que, por coisas que eu desconheço, muitas vezes me esqueço. A bem dizer, são coisas que, muitas vezes, eu prefiro esquecer. Mas não consigo.
O tal vídeo, onde Geraldo fala da tortura, emocionando Jô Soares: https://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/2021/03/31/geraldo-azevedo-tortura-ditadura/
Epílogo.
Tem coisas que Geraldo Azevedo e a companheira peruana tem todo o direito de esquecer, se quiserem.
Nós, não.
Aquele abraço.
Barcelona, Agosto de 2021.
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@1flaviocarvalho, Coletivo Brasil Catalunha. Sociólogo e Escritor.
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