Por Viegas Fernandes da Costa.
Naná, eu sei, há quase um mês enviei-te a última carta e, veja, não é porque me canso de ti. Jamais! Mas me canso do Brasil. Do Brasil! O cansaço é tanto, Naná, que às vezes tenho vontade de fazer como fizeste, juntar uns livrinhos, algumas cuecas, transferir as samambaias para o matagal mais próximo e picar a mula. Talvez Edimburgo dos Sete Mares. Parece-te um bom destino? Para mim pareceu, temo apenas não existir agência de correio por lá.
Todo este meu tom queixoso, querida amiga, justifica-se. Este país é uma tragédia, uma pantomima de nação! Como sei que abandonaste as redes sociais e a leitura dos portais de notícias, imagino que não estás a par dos acontecimentos, mas neste um mês que nos distancia da última carta que te enviei, o museu de velhas novidades segue atualizando seu acervo. E se cito Cazuza por aqui, Naná, é porque lembrei daquela noite terrível em que acompanhávamos o grotesco golpe parlamentar que arrancou a presidenta Dilma do cargo para o qual fora eleita e tu vias pela televisão as imagens daquele Parlamento infestado de vis homens brancos de moral asquerosa emporcalhando nossos sonhos e nosso presente. Lembras? Choravas e cantarolavas “O tempo não para”. Depois te viraste para nós e disseste: “vou embora!” E foste! Para longe, para muito longe, viver teu abandono de Brasil. Um abandono que só não é maior porque insisto em te contar das coisas que vejo por aqui. Como me disseste na carta, quase um bilhete, que me enviaste na última semana cobrando que eu te desse sinais de vida, nossa arcaica faina missivista é o que ainda te prende a este torrão “vermelho como brasa”.
Primeiro, a lama cobrindo casas, pessoas, balneários inteiros no litoral paulista. Quando não é a Vale do Rio Doce, é a especulação imobiliária. Tu sabes bem como são estas tragédias, Naná. Em 2008, quando os morros no Vale do Itajaí tornaram-se sorvetes funestos, tu moravas conosco em Blumenau. Foste voluntária junto aos desabrigados, conheceste o drama humano. Agora, no litoral paulista, mais de sessenta mortos. Gente pobre e preta na sua maioria. Gente que podia ter casa em lugar seguro não fosse a classe média preconceituosa pressionar a prefeitura para não colocar pobre morando no mesmo bairro dos ricos. Rolou até abaixo-assinado, a desvalorização dos imóveis era um dos argumentos. Sessenta mortos! Gente pobre, Naná, como sói ser nesta pantomima chamada Brasil. E enquanto mães e pais ainda cavavam a lama com as mãos em busca dos seus filhos, comerciantes vendia por cem Reais a garrafa de água. Eis a solidariedade do brasileiro, eis Hobbes na fonte.
A memória da tragédia, a gente sabe Naná, fica apenas entre quem perdeu pessoas que amava ou conseguiu se salvar do sabor salobro do barro. No moinho dos dias vinga a desmemória, a fome das dragas e a poética macabra do asfalto avançando sobre matas, rios e morros.
Mas não acabou, logo o noticiário foi tomado por um vinho avinagrado. A tragédia da lama deu lugar à tragédia desta outra face tão conhecida do capitalismo que é a exploração do ser humano em condição análoga à escravidão. Mais de duzentas pessoas resgatadas, Naná, nos vinhedos do Rio Grande do Sul. Muitas delas torturadas com armas de choque, ameaçadas de morte. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil publicou documento proibindo as igrejas católicas de usarem na eucaristia vinho das vinícolas envolvidas com o trabalho análogo à escravidão. Afinal, a transubstanciação só é aceitável enquanto milagre; já o sangue nos vinhos das vinícolas acusadas de escravizar trabalhadores é fruto do crime e da dor. Quem dera, Naná, fosse caso isolado. Não é. Ontem mesmo soubemos de seres humanos resgatados da condição de escravidão em arrozais de Uruguaiana. Sessenta e cinco pessoas! Na soma, e só no Rio Grande do Sul, quase trezentos seres humanos resgatados do cativeiro e dos maus tratos em uma semana.
Amiga querida, enquanto te escrevo fui alcançado pela madrugada. Aqui, ao lado da lagoa, os cães que ouço ladrar conversam com a Lua. Mas aquela matilha imunda que nos últimos anos vem rosnando e latindo das tribunas dos nossos parlamentos, esta levanta borbulhas no esgoto. Na Câmara Municipal de Caxias do Sul um vereador xenófobo, em defesa dos empresários escravocratas gaúchos, atacou o povo da Bahia. Na Assembleia Legislativa do Mato Grosso, um deputado estadual discursou com o “Mein Kampf” na mão. Na Câmara Federal outro deputado, este de Minas Gerais, proferiu peça transfóbica na tribuna. Os três, homens brancos da elite do atraso, gente indecente, bandida. Será que há gente assim em Edimburgo dos Sete Mares, Naná? Porque aqui é o esgoto, a privada, o chorume. Não há perfume, Naná, apenas miasmas.
Querida amiga, desculpa-me tanto ódio. Mas como não o sentir?
Invejo-te.
Abraço forte desde aqui da margem da lagoa.