Por Carol Castro.
Margarita Gracheva, de 25 anos, ligou para a polícia russa desesperada. Enciumado, o marido havia acabado de colocar uma faca em seu pescoço e ameaçá-la de morte. Nenhum policial apareceu. Ligaram de volta 18 dias depois – e só para propor uma conversa com o homem, sem oferecer qualquer proteção a ela. O papo não teve muito efeito. Dois meses depois, o marido, pai dos filhos de Gracheva, cortou as duas mãos dela com um machado.
Gracheva é só uma das 16 milhões de russas que sofrem violência doméstica por ano no país da Copa do Mundo – a cada hora, 1.370 delas apanham de seus maridos. No Brasil, a estatística é quase três vezes menor, ainda que seja alto: cerca de 500 brasileiras são agredidas por hora, de acordo com pesquisa do Datafolha.
Nascer mulher na Rússia, na verdade, parece ainda mais difícil do que nascer mulher no Brasil. O maior risco à vida delas não está na rua. Está em casa. Só não vale quebrar os ossos da mulher e repetir a violência mais que uma vez por ano. Está na lei: se a mulher ou as crianças não precisarem serem hospitalizadas, o agressor pode dormir tranquilo.
Entre todos os crimes registrados na Rússia, 40% são cometidos por maridos ou familiares próximos. Os dados são da domesticViolence.ru, organização formada por ativistas e advogadas russas. E esses números todos são subestimados, já que só 10% das mulheres abrem boletim de ocorrência.
“A Rússia não tem uma lei específica sobre violência doméstica e não há qualquer definição legal sobre isso. Então é difícil ter acesso a informações confiáveis. Mas não podemos minimizar o problema”, explica em nota Yulia Gorbunova, ativista e pesquisadora da ONG Human Rights Watch, na Rússia.
Por lá, violência doméstica só chama a atenção quando rola sangue, muito sangue. Só assim para a polícia aparecer e punir os agressores. Discussões, ameaças e brigas menos violentas precisam ser resolvidas em casa – pelo homem e pela mulher. Grachev, por exemplo, só se livrou do marido depois das machadadas. E mesmo assim, da cadeia, o homem ainda envia cartas cheias de ameaças.
Não é à toa esse descaso dos policiais. Poucos governantes se importam com questões de gênero na Rússia. Yelena Mizulina, membro do Parlamento russo há mais de 20 anos, começou a vida política na linha de defesa dos direitos das mulheres. Mas, sem muitas explicações, mudou o posicionamento e passou a ecoar as vozes dos ortodoxos: respeito à família acima de tudo.
Partiu dela a criação da polêmica lei “anti-propaganda gay”. Foi ela também a ideia de descriminalizar alguns tipos de violência doméstica. Do time do “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, Mizulina brigou pela aprovação de uma lei popularmente conhecida como “lei do tapa”.
Conseguiu. Desde fevereiro do ano passado, a legislação descriminalizou alguns tipos de violência doméstica. Se um homem agredir sua esposa, ou filhos, com socos, tapas ou até cortes, o máximo que pode acontecer a ele é pagar uma multa de 470 dólares e passar duas semanas na delegacia.
“A maioria das vezes é mesmo o pagamento da multa, raramente eles são punidos com 15 dias de prisão”, conta Alena Popova, advogada e ativista russa, responsável por criar a petição contra brasileiros do vídeo. “E se o homem agredir a mulher em casa e depois em outro lugar, na rua, não conta como o mesmo tipo de agressão”, afirma. Até 2016, a punição para essas agressões era de dois anos de prisão.
E tem mais: se o casal tiver uma conta conjunta e o cara não pagar a multa, a Justiça envia a cobrança para a mulher. “Esse dinheiro vai para um fundo e nós não sabemos como nossas autoridades gastam”, explica Popova. Segundo ela, casos assim são bem comuns – a vítima acaba pagando a conta pelo agressor.
Com 20 milhões de pessoas vivem na pobreza na Rússia, sendo 67% delas mulheres, divórcio não parece ser a melhor decisão. Até porque, segundo Popova, após a separação, boa parte dos russos não paga pensão. E deixa os filhos e a ex-esposa desamparados. Nessa situação, entre a fome e a violência, as mulheres optam por manter o casamento.
Tanto descuido levou a Rússia para a lista dos 18 países com piores leis de proteção aos direitos das mulheres. O país também ganhou destaque negativo em relatório recente do Banco Mundial (“Mulheres, negócios e a lei”), por conta de sua legislação.
Proibido protestar
Se você e um amigo segurarem um cartaz, juntos, em frente ao Kremlin, a sede do governo Putin, em Moscou, sem pedir autorização do governo, já podem se preparar. Policiais se aproximarão, vocês serão levados à delegacia e julgados pelo ato. Se condenados terão de pagar multa.
Manifestações com mais de duas pessoas só podem acontecer com a autorização do governo. E, como dá para imaginar pelo conservadorismo do país, as autoridades quase sempre negam as solicitações.
Até quando se segue a lei, como fez Alena Popova e outras duas ativistas, no começo do ano, a Justiça pode tomar decisões contraditórias. Popova segurava uma imagem de um boneco de Leonid Slutsky, político aliado ao presidente, com frases polêmicas dele rebatendo acusações de assédio sexual.
Três jornalistas acusaram Slutsky de propor sexo com ele. Em resposta, ele repetiu o velho discurso de ser normal se sentir atraído por mulheres bonitas – e que deveria até se sentir lisonjeadas. As acusações não deram em nada. Mais de 600 profissionais da mídia assinaram nota de repúdio ao político e boicote ao Parlamento russo.
Durante o protesto, cada uma das ativistas ficou em um canto, distantes para evitar represália e cumprir o que manda a lei. Foram todas levadas à delegacia. Popova teve de pagar multa pelo protesto – a Justiça entendeu que ela e outra ativista estavam, sim, juntas. Ainda que distante.
E mudar as coisas não parece fácil. Os meios de comunicação estatais dominam a Rússia e convencem a população com suas ideias. “Eles usam a mídia para fazer propaganda e controlar tudo. No fim, o feminismo e a defesa do direito das mulheres levam a culpa por tudo, pelo divórcio”, diz Popova.
Mas há esperança. Popova ajudou a escrever um novo projeto de lei para proteger as vítimas de violência doméstica. Ela quer mudar o quadro e garantir proteção às mulheres antes que o relacionamento termine como o de Gracheva – ou ainda pior. “Hoje, as mulheres russas precisam provar que são vítimas, enquanto os abusadores recebem a proteção da lei”, explica. E conta com a parceria de Oxana Pushkina, membro do Parlamento, que apoia o PL.
As histórias de Brasil e Rússia seguem roteiros parecidos quando se trata de direitos das mulheres. Só falta a eles chegar onde chegamos 12 anos atrás, quando a lei Maria da Penha entrou em vigor. E o projeto de Popova parece traçar esse caminho.