Ao final da terceira semana de depoimentos da CPI da Covid, uma das linhas de investigação adotada é identificar os responsáveis pela difusão em larga escala do suposto “tratamento precoce”. Os senadores querem saber, por exemplo, de quem partiu a ordem para que o laboratório do Exército ampliasse a produção de cloroquina. E também quem teria sido o responsável por comandar a distribuição do medicamento sem eficácia contra a covid-19 para populações indígenas.
“Não comprei nenhum grama de hidroxicloroquina”, disse o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, última autoridade que fez parte do governo a passar pela CPI. No entanto, naquele mesmo dia, o titular do Palácio do Planalto resolveu facilitar a investigação dos senadores sobre quem seria o responsável por promover a falsa cura.
“Não vou falar o nome para não cair a live“, disse Jair Bolsonaro, pelas redes sociais, na habitual transmissão das quintas-feiras. “Aquele negócio que o pessoal usa para combater a malária”, “o remédio que ofereci para a ema”, descreveu. “Usei lá atrás e no dia seguinte tava bom. E vou dizer mais: há poucos dias estava me sentindo mal e, antes mesmo de procurar o médico… Olha só que exemplo estou dando”, sugeriu o o paladino da automedicação. “Tomei, fiz exame, não estava (doente). Mas, por precaução, tomei”, afirmou.
Além disso, Bolsonaro voltou a atacar a Comissão. Para ele, a “CPI continua sendo um vexame nacional”. E os senadores que a integram seriam uma “súcia” (bando) de “desocupados”. Sobre o senador Renan Calheiros (MDB-AL), o presidente voltou a fazer menção indireta ao xingamento de “vagabundo” proferido por seu filho Flávio. “O relator foi bem intitulado pelo senador Flávio Bolsonaro na semana passada”. Flávio, por sua vez, disse que a CPI “não vai dar em nada”, e corre o risco de “implodir”.
Doutor Bolsonaro?
Não bastassem os inúmeros estudos científicos publicados desde o ano passado, o Brasil empilha centenas de milhares de evidências sobre a ineficácia da cloroquina, bem como dos demais medicamentos que compõem o chamado “kit covid”. Principalmente na segunda onda, os médicos relatam que a maioria dos pacientes que chega aos hospitais apresentando quadros graves da doença seguiram o tratamento prescrito pelo presidente.
Das emas do Alvorada a ministros, ninguém escapa da campanha publicitária de Bolsonaro em favor da hidroxicloroquina. “Eu tive, e tomei. Você já teve, não? Vai ter um dia? E se tiver, vai tomar o quê?”, perguntou ele à ministra da Agricultura, Tereza Cristina, em uma live passada. “Quem é o o teu médico?”, pergunta o presidente, colocando a ministra numa saia-justa. “Doutor Bolsonaro?”, ela responde, constrangida. Este foi um dos trechos mostrados na CPI pelo senador Rogério Carvalho (PT-SE), para exemplificar que a prescrição do medicamento é praticamente uma diretriz do presidente.
Capitã cloroquina
Na semana que vem, os trabalhos da CPI recomeçam com o depoimento da secretária de Gestão do Trabalho do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro. De acordo com Pazuello, teria sido Mayra – conhecida como “capitã cloroquina” – a responsável por propor e desenvolver o aplicativo TrateCov. Lançado em Manaus, em 11 de janeiro, a plataforma digital serviria para acelerar o diagnóstico em pacientes com covid-19.
“Assim nós pudemos, em um período de cinco minutos de utilização do aplicativo, ofertar imediatamente para milhões de brasileiros o tratamento precoce”, afirmou, na ocasião. Para qualquer sintoma apresentado, seja por cachorros, bebês ou mulheres grávidas, havia uma única resposta do aplicativo: o “kit covid”. Bombardeado pela comunidade médica, e também na imprensa e nas redes sociais, o TrateCov foi desativado 10 dias depois. Nesse período, a capital amazonense registrou a morte de pacientes por asfixia em razão da falta de oxigênio hospitalar.
À CPI, Pazuello alegou que o aplicativo não tinha sido lançado oficialmente, nem teria sido utilizado por médicos. Além disso, ele afirmou que o aplicativo havia sido “roubado”. Segundo ele, um hacker teria alterado os parâmetros do plataforma para receitar hidroxicloroquina e ivermectina. Contudo, tanto o general como a “capitã cloroquina” participaram de evento oficial de lançamento do TrateCov. O evento contou, inclusive, com cobertura da TV Brasil, emissora pública ligada ao governo federal.
Mayra também coordenou equipes de “médicos voluntários” que visitaram unidades de saúde, públicas e privadas, em Manaus, para convencer os colegas a adotar “atendimento precoce”. Em depoimento ao Ministério Público Federal (MPF), ela afirmou que medicamentos do “kit covid” teria sido “muito estigmatizados por conta de uma politização da pandemia”.
Como Pazuello, ela também ingressou com habeas corpus no Supremo Tribunal Federal (STF), para poder se calar diante da CPI. Contudo, seu pedido foi negado pelo ministro Ricardo Lewandowski.
Gabinete paralelo
A CPI também investiga a existência de um grupo que prestaria “assessoramento paralelo” a Bolsonaro em questões de saúde durante a pandemia. Nesse sentido, esse grupo teria tentado, inclusive, alterar a bula da hidroxicloroquina, inserindo a recomendação de uso para o tratamento da covid-19. O primeiro a revelar esse movimento foi o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta. O episódio foi confirmado pelo presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antônio Barra Torres.
Ele disse que, em reunião no Palácio do Planalto, a médica infectologista Nise Yamaguchi estaria “mobilizada” para alterar a bula do medicamento. Nise, no entanto, negou. Ela atribuiu ao tenente da Marinha Luciano Dias Azevedo a autoria da minuta do decreto que pretendia alterar as recomendações para o uso da droga. A doutora, demitida do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, por insistir no “tratamento precoce”, foi convidada a dar explicações na CPI. Seu depoimento, contudo, ainda não tem data marcada.
O empresário Carlos Wizard é outro integrante do suposto “gabinete paralelo” que deve ser chamado à CPI. O requerimento de convocação do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) deve ser votado na próxima quarta-feira (26). Segundo o senador, haveria indícios de que o empresário mobilizou recursos financeiros para fazer a divulgação do uso da cloroquina, além de campanhas contra o distanciamento social. Nesta semana, o general Pazuello negou a existência de um “conselho científico independente”. No entanto, ele confirmou que, por iniciativa de Wizard, fez “meia reunião” com o alegado comitê. “Foi só uma vez, 15 minutos. E nunca mais”.
Renan chegou a nomear como “ministério da doença” o referido grupo de assessoramento paralelo. Segundo Flávio, outro destacado conselheiro de seu pai para questões da pandemia é o pastor Silas Malafaia. De acordo com o senador, ambos se falam quase diariamente, e o pastor influencia as decisões do presidente.