Regressei há poucos dias de outra viagem à Europa. Confesso que cheguei de volta profundamente consternado com as cenas de tristeza que pude presenciar nas ruas de várias das cidades por onde passei.
Em especial, creio que jamais me esquecerei das duras palavras e da expressão facial de uma senhora portuguesa de meia idade dirigidas a uma pedinte que estava sentada numa das calçadas de Lisboa junto a seu cachorro. Ouvir a tal senhora dizer à moradora de rua que ela só se compadecia do animal, pois ele não tinha culpa de nada, mas não da mulher, que não tinha nada que estar por ali perturbando a tranquilidade dos portugueses. Por isso, ela deveria ir embora de Portugal imediatamente e voltar para o lugar de onde tinha vindo.
Sim, essas palavras soavam muito cruéis para os ouvidos de quem ainda tivesse algum resquício de sentimento de humanidade. Mas, contemplar a fúria estampada em seu rosto me provocou ainda muito mais dor e tristeza. Seus lábios espumavam um ódio tão ferino que era impossível não senti-lo.
É verdade, atualmente, ao percorrer o centro de Lisboa, assim como de inúmeros outros de outras cidades europeias, vemos que a miséria está presente por todos os lados. São inúmeros os casos de moradores de rua espalhados por todos os cantos, em situações muito semelhantes com as quais nos deparamos ao andar, por exemplo, pelo centro da cidade de São Paulo. Também é certo que a grande maioria das pessoas vivenciando essas condições de duríssima penúria são imigrantes originários de outros países do chamado Sul Global.
Na Europa de hoje, as classes dominantes estão colocando em prática algo que nós brasileiros conhecemos muito bem de nossa própria experiência: culpar as vítimas pelas desgraças a que elas foram submetidas por essas mesmas classes dominantes.
Assim, aqueles que mais sofreram os efeitos dos monstruosos crimes históricos cometidos pelo colonialismo e imperialismo de pura cepa europeia são apresentados para o público da Europa e do resto do mundo como sendo os reais causadores dos problemas que nos estão acometendo tão intensamente.
Historicamente, é inegável que foram as classes dominantes da Europa as responsáveis pelas maiores desgraças e tragédias já ocorridas ao longo do tempo pelo conjunto da humanidade. O racismo, o subdesenvolvimento, a exploração despiedada dos recursos naturais dos países não europeus e o lançamento destes à condição de submissão e dependência absoluta foram todos frutos derivados da expansão colonialista, num primeiro momento, e imperialista, à continuação. E colonialismo e imperialismo têm a marca registrada das classes capitalistas da Europa, assim como dos Estados Unidos que, digamos, “no es lo mismo, pero es igual”.
Foi devido a essa exploração intensa dos países vítimas de seu colonialismo e imperialismo que a Europa e os Estados Unidos puderam erguer suas pujantes economias e dar sustentação a seus Estados nacionais. Por meio da imensa sucção do sangue dos habitantes das nações não europeias e do roubo de seus recursos naturais, as classes dominantes dos centros colonialistas e imperialistas puderam, inclusive, amainar os ânimos e a resistência das classes trabalhadoras em seus próprios países. Com a super-exploração das nações subjugadas, a burguesia dos países colonialistas-imperialistas puderam oferecer algumas migalhas a mais para manter apaziguados os trabalhadores de suas sociedades.
No entanto, nos dias de hoje, com o avassalador avanço da deterioração dos níveis de vida no Sul Global, muitos de seus habitantes decidiram buscar meios para sua sobrevivência nos centros causadores de sua deplorável situação. Por isso, as ruas das cidades europeias e dos Estados Unidos estão repletas de imigrantes, de gente que procura fugir da miséria e da fome provocadas pelos donos do grande capital europeu e estadunidense.
Como é habitual nessas horas de conturbação do sistema capitalista colonialista-imperialista, seus senhores buscam aplacar o crescente sentimento de insatisfação entre suas massas trabalhadoras através da criação de bodes expiatórios. Foi assim nas primeiras décadas do século passado, quando, na Europa, os judeus ocuparam o papel do grande inimigo a ser combatido e exterminado. Hoje, na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, os judeus já não representam essa figura de inimigo do sistema a ser eliminado. Na verdade, por meio da manipulação feita pelo sionismo, procura-se difundir e generalizar a ideia de que todos os judeus são sionistas e, portanto, aliados incondicionais dos ideais do colonialismo e imperialismo ocidentais. Desse modo, busca-se jogar a culpa de todas as mazelas presentes nas sociedades do Ocidente coletivo aos imigrantes oriundos de outros continentes.
Lamentavelmente, devido ao forte controle que exercem nos atuais meios de comunicação, especialmente as plataformas donas das grandes redes sociais digitais, essa visão deturpada da responsabilidade dos imigrantes na origem dos problemas vai se expandindo de maneira rápida e intensa, chegando mesmo a afetar boa parte dos grupos que, antes, se identificavam com os ideais de esquerda de uma fraternidade e solidariedade universais. Poucos são os partidos e organizações da dita esquerda europeia que mantêm acesa a chama da unidade da classe trabalhadora com independência das origens nacionais de cada qual. Já não há na Europa muitos partidos políticos de esquerda que continuam mantendo elevado esse sentimento tão caro ao espírito dos verdadeiros humanistas.
Embora seja reconfortante saber que o Partido Comunista Português se mantém fiel ao internacionalismo proletário, infelizmente, ele já aparece na região como uma exceção. Num continente pragado de concessões e submetimento aos ditames do liberalismo capitalista, boa parte das agrupações que outrora aderiam ao princípio da unidade dos trabalhadores do mundo passaram a tomar posturas profundamente discriminadoras de tudo e todos os que se contraponham aos interesses do grande capital e do imperialismo. Provavelmente, a aversão dessa suposta esquerda às massas de sofridos imigrantes e seu não acolhimento se devem a terem elas próprias passado por um indignante processo de desvirtuamento.
Logicamente, não queremos que os sinais da miséria e do sofrimento humano nos grandes centros capitalistas sigam sendo dados pelas maiores vítimas do sistema de exploração capitalista, ou seja, os trabalhadores das nações periféricas. Por isso, a luta por um mundo multipolar, sem a dominação de nenhum centro hegemônico se faz tão necessária por parte de todos os que de verdade nutram anseios humanistas e solidários.
Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.
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