Por Cynara Menezes.
Eu era criança bem pequena, lá pros idos de 1974. Um rapaz negro, alto, muito estiloso, conhecido de todos na cidadezinha onde eu morava, no interior da Bahia, tinha sido preso, acusado de ser ladrão e de esconder o produto do roubo dentro de sua bela cabeleira estilo black power. Saiu da cadeia com a cabeça raspada.
Este tipo de violência contra os negros era comum nos anos da ditadura militar. A ditadura decretou a “democracia racial” no país e exigia que ela fosse cumprida na base da porrada. O negro tinha que “se comportar” –e era a ditadura quem estabelecia as regras deste “bom comportamento”. Militarizada pela ditadura, a polícia aplicava rigorosamente a “lei da vadiagem”, de 1941, que prevê (ainda está em vigor) a prisão de quem perambular pelas ruas ou simplesmente estiver desempregado –e cujos “critérios” máximos eram, como hoje, a cor, a classe social e a aparência do “criminoso”.
“Ao assumir o mito da democracia racial como uma de suas bases ideológicas, a ditadura empresarial-militar garantia, de um lado, que fosse intocado o modelo de supremacia branca e os privilégios a ele decorrentes; de outro, sufocava qualquer possibilidade de enfrentamento direto da população não branca sobre as violências sofridas”, defende Thula Rafaela Pires, doutora em Direito pela PUC-Rio, no artigo Estruturas Intocadas: Racismo e Ditadura no Rio de Janeiro.
“A realidade de negros e negras era, em regra, permeada por ‘blitze’, prisões arbitrárias, invasões a domicílio, expropriação de lugares de moradia (remoções), torturas físicas e psicológicas, além do convívio com a ameaça latente dos grupos de extermínio. Uma política criminal enraizada no colonialismo escravocrata, radicada principalmente nas favelas, subúrbio, Baixada Fluminense e outras regiões periféricas do Estado”, continua. “Qualquer semelhança com a realidade atual dos autos de resistência não é mera coincidência.”
Duas lideranças comunitárias da Rocinha, Luis Antonio, o Xavante, e Antonio Ferreira, o Xaolin, contaram à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro como era: “Eles entravam com suporte militar, entravam e desciam com a gente amarrado tipo arrastão de peixe, que você joga aquele espinhal. Todo mundo amarrado na mesma corda, descendo o morro”, disse Xavante.
“Isso aí tem a questão da discriminação do negro e do favelado. Se eles torturavam e matavam a classe média, o favelado estava no mesmo caminho, só que com outro viés. O viés da discriminação e da marginalidade, né? Para eles todo favelado era marginal”, contou Xaolin. “E quando dava dez horas da noite onde você estivesse, você tinha que correr da polícia, se você não corresse… Depois de dez horas da noite os caras te prendiam e dependendo, se fosse preso na sexta-feira à noite, só saia na segunda-feira.”
Asfilófio de Oliveira, o DJ Dom Filó, da equipe de som Soul Grand Prix, contou ter tomado vários enquadros dos canas apenas pela forma como estava vestido e pelo cabelo black power. “A gente recebia alguns pentes manufaturados, os garfos… Porque inicialmente tinha que produzir, tirar alguns aros de bicicleta e fazer o pente. E a gente fazia dez por mês e a polícia levava os dez, porque para eles aquilo era uma arma. Então aquilo era complicado, porque meu cabelo era grande, então eu precisava de um aro que eles achavam… O arame tinha tipo 30 centímetros, porque quanto maior melhor, só que para eles aquilo era considerado uma arma. Então você andava com aquilo dentro do cabelo, eles vinham e tomavam.”
“A polícia vinha e dava aquela geral nos jovens para ver: qual a arruaça que eles fizeram? Não era só negro, não, era geral. Mas pro preto ele já era culpado de cara. Então a primeira geral era nele. Já manda encostar. Naquela época era encostar na parede, era assim a abordagem. E era constante. Então a partir do momento em que o visual daquele negro muda, agride esse policial. Ainda mais os policiais negros, os capitães do mato que chegam e acham que tem que priorizar, tripudiar em cima daquele negro, entendeu? Então essas abordagens passam por aí”, contou Dom Filó.
Expulso da Aeronáutica, Daílton Lopes Soares, um dos militares perseguidos que deram depoimento à Comissão, contou da violência cotidiana sofrida por seu pai por não ter emprego. “Eu lembro, antes de eu entrar para o quartel, o meu pai ser humilhado várias vezes. Às vezes ele saía e esquecia o documento em casa. E você sabe muito bem que naquela época tinha a lei de vadiagem. Se você não tivesse carteira como documento, você era conduzido para a delegacia. Ele foi várias vezes para a delegacia, a gente ficava desesperado em casa”, revelou Daílton.
“Às vezes meu pai ficava 48 horas sem aparecer em casa e a gente não sabia o porquê. E ele aparecia com as duas mãos inchadas: ‘o que aconteceu, pai?’, ‘fui preso’, ‘mas por quê?’, ‘porque eu tava sem documento, me levaram para a delegacia, eu falei que era trabalhador, mostrei a mão cheia de calo’, ‘a ordem aqui é a seguinte: qualquer pessoa que for presa sem documento, para não esquecer mais, tem que levar umas porradas com cassetete na mão’. Aí era obrigado a abrir a mão, e meu pai dizia que levava três em cada mão. Era com toda a raiva que eles davam. Dá vontade de chorar, sabe? Um cidadão sair para procurar emprego, esquecer o documento em casa, ser preso… até parecia que na época nosso país estava navegando em emprego. Estava faltando emprego na época da ditadura. Várias vezes meu pai foi preso, humilhado dessa forma, esculachado.”
O discurso que vemos ser utilizado na campanha eleitoral pela extrema-direita de que “não existe racismo no Brasil”, a necessidade de se impor uma “harmonia social” que nunca existiu (e que hoje acusam o PT de “destruir”), escondia o temor dos generais de que os antagonismos raciais na sociedade fossem usados pelas “organizações subversivo-terroristas”. Não à toa, as entidades do movimento negro que começavam a surgir no final da década de 1970 eram todas monitoradas pelos serviços de inteligência.
“Existe no BRASIL, já há alguns anos, embora com certa raridade, a intenção velada do movimento subversivo em suscitar o problema da discriminação racial, com o apoio dos órgãos de comunicação social. O assunto se presta à ideia-força do movimento subversivo-terrorista, por ser sensível à nossa população e contrário à formação brasileira. É explosivo e aglutinador, capaz de gerar conflitos e antagonismos, colocando em risco a segurança nacional”, diz um documento oficial da época, reproduzido no relatório final da Comissão.
Outro alvo da repressão dos militares aos negros eram os bailes black, onde infiltravam gente para vigiar e dedurar. “Teve uma época que eu me lembro muito bem, que a gente saindo do baile tinha aquela polícia naval que fazia ronda ali e a gente saiu e eles foram atrás da gente, entendeu? Correram, saíram atrás da gente, pegaram o nosso grupo, que a gente saía daqui da Rocinha e ia dançar lá pra aqueles lados. E aí, rapaz, eu tinha um cabelo que era isso assim, era um black grande, e os caras cortaram nosso cabelo, deixaram a gente careca. Levaram a gente para dentro do quartel, deram um banho de água fria na gente. E ficamos lá até a tarde do outro dia. Final da década de 70, a gente pregava na época o fim da ditadura nos bailes, a igualdade. E o movimento black era
discriminado”, lembrou Filó.
“A partir dos depoimentos coletados pela CEV-Rio (Comissão Estadual da Verdade do Rio), o que se constatou é que a vigilância na porta dos bailes, as revistas policiais, as apreensões dos pentes, os cortes dos cabelos Black Power, as prisões arbitrárias, as torturas físicas e psicológicas, não se restringiram às lideranças das equipes de som ou do movimento black. Bastava frequentar os bailes para presenciar ou sofrer diretamente esses tipos de violações praticadas pelos agentes do Estado”, diz o relatório.
Este hábito de raspar a cabeça dos negros para acrescentar uma humilhação extra à prisão remonta aos estertores da escravidão no Brasil, quando o sádico chefe de polícia da corte, Coelho Bastos, ganhou o apelido de “rapa-coco” por raspar a cabeça dos negros que eram capturados ao fugir para os quilombos ou os pró-abolicionistas, a quem considerava “desordeiros”.
Havia limitação do direito de ir e vir dos moradores dentro e fora das favelas, exatamente como vivem os cariocas dos morros após a intervenção militar decretada por Temer no Rio de Janeiro (e que pode se expandir para todo o país com a eleição de Jair Bolsonaro). A vigilância sobre os favelados, considerados criminosos até prova em contrário, era constante.
Um artista negro black power foi alvo dileto da repressão e do racismo institucional da ditadura: Tony Tornado. Os militares temiam que Tony, influenciado pelos Panteras Negras, se tornasse uma liderança política contra o racismo e consequentemente uma ameaça ao sistema. Em 1971, quando a canção Black is beautiful foi cantada por Elis Regina no Festival Internacional da Canção, Tornado levantou o punho cerrado para o alto, repetindo o simbólico gesto dos Panteras Negras. Saiu do Maracanãzinho preso pelo Dops (Departamento de Ordem Política e Social). Um documento do Exército o acusa de ter “vida duvidosa”.
No FIC anterior, de 1970, Tony Tornado havia saído campeão com BR3. Um boato, porém, foi espalhado pelo colunista social de O Globo, Ibrahim Sued, colocando o cantor na mira da ditadura: a canção seria uma metáfora para o vício em heroína. O autor da canção, Tibério Gaspar, contou a Lou Micaldas, do site Velhos Amigos, que foi levado ao SNI por causa da história.
“Fui chamado no SNI porque houve um boato que a música BR3 era a veia do braço, era o hino do toxicômano. Isso foi uma notícia forjada pelo Ibrahim Sued, com a parceria de um general, já falecido. Fui chamado no SNI pra esclarecer não só esse fato, mas como também o medo que eles tinham na época que o Tony Tornado fosse um líder negro que pudesse causar uma turbulência social”, disse Tibério.
“Por trás disso, estava o lançamento de um livro chamado Tóxico, do general chamado Jaime Graça. E esse general colocava a BR3 como sendo uma música de tóxico. No trecho que dizia ‘Há um foguete rasgando o céu, cruzando o espaço. E um Jesus Cristo feito em aço, crucificado outra vez’, ele dizia que eu queria dizer que era uma seringa que vem do céu cruzando o braço, uma agulha feita em aço pra espetar outra vez. Ele transcreveu isso no livro dele. Eu não pude me defender porque todos os direitos civis nessa época estavam cerceados. Só através da Justiça Militar.”
“Paguei muito caro por comandar o movimento Black Rio. Acharam que estávamos incitando o racismo e me chamavam de crioulo comunista”, disse Tony ao Almaque Brasil. À revista Trip, em 2001, ele comentou ter ouvido de um coronel: “Não consigo entender, você crioulo e comunista? Não existe crioulo comunista”. Deus Negro, o compacto simples de 1976 que continha a canção Se Jesus Fosse Um Homem de Cor,foi censurado. “Você teria por Ele esse mesmo amor/Se Jesus fosse um homem de cor?”, questionava a canção, incomodando ao mesmo tempo a igreja e os militares.
Tony Tornado cantava a música com o punho erguido e acabou intimidado a depor, como contou o co-autor Claudio Fontana a Paulo César Araújo no livro Eu Não Sou Cachorro, Não. “Eles chamaram a gente lá na Federal e pediram para eu explicar o que eu queria dizer com aquilo; se eu e o Tony Tornado estávamos querendo fazer algum movimento de protesto no Brasil e tal. ‘Vocês querem jogar os negros contra os brancos?’ Evidentemente, respondemos que não, senão seríamos presos ali mesmo.” Ao todo foram nove passagens do ídolo negro pelo Dops. Tornado acabou indo embora, exilado em países como Tchecoslováquia, Chile, Uruguai, Egito e Cuba.
Em 1988, três anos após a volta da democracia, questionar o racismo continuava a ser considerado “subversivo”. A Polícia Militar do Rio de Janeiro reprimiu, com toda a força, a marcha dos negros contra “a farsa da Abolição”, que completava 100 anos naquele 13 de maio. Para terminar de enfurecer os fardados, os organizadores haviam aludido aos pelotões de soldados negros colocados por Duque de Caxias, o patrono do Exército, para morrer na Guerra do Paraguai. E Dom Hipólito, bispo de Caxias, ainda por cima sugeriu mudar o nome da cidade fluminense. A fúria dos militares simplesmente impediu a realização da caminhada da Candelária até o busto de Zumbi.
“E o Exército colocou gente na Central do Brasil, em todos os lugares, qualquer um que estivesse com um papel na mão, com a bandeira na mão, nego tomava mesmo, batia, tomava”, narra o então presidente do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras, Januário Garcia. Os militares depredaram as estruturas montadas, destruíram faixas, cartazes, tudo… A multidão avança até onde consegue caminhar.
No carro de som, o locutor brada: “Nós vamos até onde o racismo deixar”.
Entre os negros que de fato entraram para a luta armada, a Comissão da Verdade de São Paulo estimou que há mais de 40 na lista de mortos e desaparecidos pela repressão. O relatório da CEV-Rio cita Gerson Theodoro de Oliveira, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), morto em 1971 no DOI-CODI, no Rio; Geraldo Bernardo da Silva, sindicalista, se suicidou em decorrência de torturas sofridas em 1969 na Vila Militar; Carlos Marighella, militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), assassinado em 1969 em São Paulo.
Além de Marighella, outro célebre guerrilheiro negro é Osvaldo Orlando da Costa, o “Osvaldão”, que militava no PCdoB. Natural de Passa-Quatro-MG, formado em Engenharia Elétrica em Praga, na então Tchecoslováquia, Osvaldão se engajou na guerrilha do Araguaia ao voltar para o Brasil, entre 1966 e 1967. Belo, culto, com quase 2 metros de altura, ganhou fama de “imortal” entre os ribeirinhos. E para combatê-la, ao ser capturado, em 1974, teve a cabeça decepada e exibida como troféu. Seus restos mortais nunca foram encontrados.
Em 2015, Ana Petta e André Fernandes lançaram o documentário Osvaldão, sobre a vida do “gigante invencível” que podia se transformar em pedra, árvore, vento.