Por Miguel Martins.
“Você tirou uma laje da minha cabeça por saber que não tinham crianças se tocando”, confessou o senador José Medeiros, relator da CPI dos Maus Tratos em Crianças e Adolescentes, a Gaudêncio Fidélis, curador da exposição de temática LGBT Queermuseu.
O alívio do parlamentar do Mato Grosso deu-se após a revelação de que uma das denúncias recebidas pela CPI sobre a exposição era na verdade uma das tantas notícias falsas atualmente espalhadas pela internet. Na sessão da quinta-feira 23, ele disse ter sido “informado” de que a mostra cancelada pelo banco Santander abrigava uma obra para crianças “transitarem entre gêneros”.
Fidélis fez então a interpretação, ou a exegese, como diriam os críticos de arte, da obra “O Eu e o Tu”, de Lygia Clark, uma das atrações da Queermuseu. “Dentro do contexto dos anos 1960, ela revela a transição de identidade e a percepção do outro. É uma experiência do outro, sem considerar o outro a partir de uma visão a priori.” Para Medeiros, bastaria a explicação: a obra não trazia crianças se tocando, pois os “macacões” de Clark vestiam manequins na Queermuseu.
O fato de notícias falsas serem tratadas como denúncias por Medeiros e Magno Malta, presidente da CPI, revela o desvirtuamento de uma comissão que teve início com temas como o jogo da Baleia Azul, fenômeno responsável pelo suicídio de adolescentes, e o cyberbulling.
Cantor Gospel, Malta buscou cativar a atenção do público nessa reta final ao aproveitar a popularidade dos ataques de grupos conservadores como o MBL à Queermuseu e à perfomance com nudez de um artista no Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Além de Fidélis, esteve presente na sessão Luiz Camilo Osório, curador da exposição do MAM em que a perfomance “La Bête” ocorreu, e o procurador Fernando de Almeida Martins. “Ninguém está sendo convocado porque é bandido ou pedófilo”, garantiu Malta, após ser criticado pela senadora e ex-ministra da Cultura Marta Suplicy, que assumiu o papel de defesa dos curadores.
O tratamento de Malta aos convidados antes da sessão foi um dos temas da troca de farpas entre os senadores. Fidélis e o coreógrafo Wagner Shwartz, artista que protagoniza a performance do MAM, foram alvos de um requerimento de condução coercitiva pela CPI após não comparecerem à primeira convocação. O primeiro pediu o adiamento de seu depoimento, e o segundo sequer recebeu o convite, que foi endereçado ao museu e não ao artista.
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu o depoimento à força do coreógrafo, mas manteve o de Fidélis. Disposto a prestar esclarecimentos na comissão, o curador pediu a Malta para retirar o pedido de condução coercitiva antes do depoimento. O senador sustou a medida na terça-feira 21.
Na sessão da quinta 23, Malta estava visivelmente nervoso, em especial com Marta, a quem acusava de nunca ter comparecido à CPI. “Como não frequenta, sai essas pérolas”, disparou.
Durante o depoimento do curador da exposição do MAM, o presidente da comissão o questionou sobre a fixação de placas a alertar o público sobre a performance. “Havia três ou quatro avisos de nudez”, afirmou Osório. Malta então garantiu: “Quando você põe uma placa de cenas de nudez, é muito mais convidativo para entrar do que para não entrar.” “A Monalisa é bem vestida”, devolveu ironicamente Marta.
Defensor da redução da maioridade penal, Malta recorreu a contragosto ao Estatuto da Criança e do Adolescente para defender que é proibido expor crianças a esse tipo de performance. “Esse código diz que se pode cometer crime sendo criança, embora eu pessoalmente não concorde, mas a lei diz isso”.
O ECA estabelece que é proibido “produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente.” Para enquadrar o caso da performance nesse artigo, é preciso partir do princípio de que o contato da criança com o artista nu possui conteúdo erótico, como lembrou Marta. “A lei não diz que é proibido, mas que tem que ter informação.”
O curador da exposição do MAM tentou explicar que a performance baseia-se na obra Bichos, também de Lygia Clark. “O público é convidado a participar do processo. É um bicho que está sempre encontrando formas, achando um momento poético. Ele (o coreógrafo) se apropria desse trabalho e começa a performance manuseando um bicho da Lygia Clark, e ele se torna o bicho. E o publico é convidado a mexer no corpo.”
Medeiros mudou rapidamente de assunto e perguntou se o público de crianças era grande. “Só vi uma”, disse Osório. Em seguida, o senador falou de “crianças” tocando o artista, e foi corrigido pelo curador. “É irrelevante o número de crianças. Saiu tanta foto na internet.”
Fonte: Carta Capital