Por Susane Amaral Veira, para as Blogueiras Feministas.
Ao realizar estágio no Setor de Serviço Social da Vara de Execuções Penais do Fórum da Comarca de Florianópolis em Santa Catarina fiquei intrigada em conhecer mais sobre a situação das mulheres presas e egressas do sistema prisional.
Então, eu e a professora orientadora do meu trabalho de conclusão de curso elaboramos um projeto de intervenção, realizando entrevistas com as egressas com posteriores orientações e encaminhamentos aos recursos comunitários, visando a inclusão social. Percebemos a falta de atenção governamental para essas mulheres ao saírem das condições de aprisionamento. Todavia, essa situação de descaso não difere daquelas que se encontravam presas.
Quando nos deparamos com notícias de mulheres que cometeram crimes temos a impressão de serem exceções porque mesmo que dados estatísticos demonstrem o crescimento da população carcerária feminina não conseguimos associar a imagem da mulher e os papéis a ela designados na sociedade com o fato de praticarem um delito. Percebemos que a ideia da mulher inserida no “mundo do crime” está intrinsecamente permeada de preconceitos de gênero. A não aceitação das mulheres como autora de crimes, sobretudo aqueles que envolvem violência e crueldade, legitima a violência perpetrada a elas quando encarceradas por parte das outras presas e dos funcionários dos estabelecimentos penais e o descaso governamental quando se trata do encarceramento feminino.
Traçamos um perfil das mulheres entrevistadas. Observamos que 70% das mulheres sentenciadas que compareceram à Vara de Execuções Penais de Florianópolis, durante o nosso período de estágio são brancas, 30% são pardas e negras, sendo que 22% são pardas e 8%, negras. Considerando que a colonização da região é europeia, isso pode explicar a diferença catarinense dos índices nacionais, quanto à presença de mulheres presas ser de maioria branca. A maior parte tem entre 19 e 29 anos de idade, possui o ensino fundamental incompleto, é ou já foi casada ou convivente, tem pelo menos um filho e trabalham em serviços domésticos. Em relação às doenças, 7 delas disseram ter o Vírus da Imunodeficiência Humana – HIV e 5 informaram que possuem transtornos psiquiátricos. Referente ao uso de drogas, a maioria disse não ser usuária. No que concerne ao crime cometido, a maioria foi presa por tráfico de drogas e o tipo de crime foi relacionado à droga.
A partir da análise das entrevistas, podemos verificar a relevância de vários resultados, entre eles, a precarização do trabalho feminino, a baixa escolaridade das mulheres, além da proporção de mulheres dependentes químicas e aquelas que entraram no tráfico de drogas por dificuldade financeira. Percebemos que o encarceramento feminino tem desdobramentos imensuráveis para a família da mulher presa, principalmente para os filhos, posto que, em geral, são as únicas responsáveis por seus lares.
Além disto, os filhos se tornam mais vulneráveis a acusações, pois o foco se desloca para suas condutas, numa ligação entre a hereditariedade e o crime. Considerando que a maioria das infrações penais está ligada ao uso de drogas, ressaltamos a necessidade de ampliar a rede de proteção aos dependentes químicos, através da mediação de estratégias junto a várias instituições que possibilitem tratamento e acompanhamento adequado.
Entre os principais motivos apontados no cometimento de crimes, chama a atenção a influência de terceiros, em geral homens com as quais mantinham vínculos afetivos o que levou a alguns questionamentos: o que faria uma mulher recusar o dinheiro ilícito que seus parentes lhe oferecem quando ela e seus familiares passam fome? O que levaria uma mulher a denunciar o próprio filho ou o marido ou ainda parentes para a polícia ao saber que estão exercendo uma atividade criminosa?
Dentre os motivos expostos compreendemos que, em geral, quando a mulher nega o delito: mencionam os familiares como autores, que foram presas injustamente, que foi forjado ou porque já tinham passagem pela polícia. E quando assumem a autoria do crime, associam ao sustento econômico ou ao uso de drogas.
Ouvi histórias sobre o cotidiano no Presídio que retratam a situação degradante que passam essas mulheres: falta de produtos de higiene pessoal, comida estragada, superlotação, ociosidade, dificuldade de conseguir acesso a tratamento de saúde, etc. Uma mulher grávida relatou que estava há dias sem tomar a medicação para epilepsia. Reclamaram da ausência de profissionais da área da saúde e do descaso com que são tratadas quando enfermas. Disseram que os funcionários do presídio só chamam o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência – SAMU quando há risco de morte. Também relataram violência de agentes penitenciários, violência policial e tortura.
Refletindo sobre o contexto prisional e a violência institucional, propomos alguns questionamentos: estando elas num local onde ficam a mercê da boa vontade alheia quem as defenderá, quem ficará do seu lado? Caso seja comprovada a violência sofrida, dificilmente a presidiária será considerada vítima (por ter sofrido violência dentro do presídio) e culpada (pelo delito cometido fora, causa da prisão), ao mesmo tempo. O culpado seria o oposto da vítima, portanto, se já é culpada, o papel de vítima lhe cabe?
Caso essas mulheres fossem encaminhadas para fazer exame de corpo de delito no Instituto Médico Legal, como seriam tratadas? Iriam escoltadas pelos seus próprios algozes? Seu testemunho teria alguma credibilidade? Teriam elas coragem para denunciar? A violência sexual também foi relatada. Se um agente penitenciário tiver interesse sexual por uma das presas e lhe oferecer favores em troca de sexo, o que elas podem esperar se negarem? Teriam elas opção de decidir ter ou não relação sexual com um agente, “estando nas mãos” desses homens?
Considerando a classe social e o gênero aos quais pertencem, entendemos que elas são duplamente penalizadas. Primeiramente, por serem mulheres transgressoras do modelo feminino, serem pobres, terem cometido um delito e serem presas. Outra pena a que são submetidas é a forma com que são tratadas dentro do sistema prisional, as injustiças, as inúmeras formas de violência que geram revoltas e indignação, ao contrário do objetivo da prisão que é o de provocar o arrependimento, prevenir novos crimes e “ressocializar”.
Quando egressas consideram que têm a liberdade “vigiada” e que a qualquer momento podem voltar para o presídio. As egressas buscam alternativas que não seja o retorno a criminalidade. As dificuldades encontradas e principalmente, o preconceito e a estigmatização, acabam por impulsionar a reincidência.
Constatamos a necessidade de maior articulação com as diversas esferas da sociedade, que sejam mobilizados recursos comunitários para que os benefícios de liberdade condicional e prisão albergue domiciliar concedidos signifiquem realmente o cumprimento de um período de passagem para a liberdade, e não à volta para o “mundo do crime” e à exclusão social.
Em relação a “ressocialização”, as ex-detentas sentem-se triplamente penalizadas: a primeira vez, ao serem presas; a segunda, pelo tratamento recebido dentro do sistema prisional; e a terceira, pela discriminação que sofrem quando retornam à sociedade, que desconfia que sejam capazes de não praticarem mais delitos e negam oportunidades. Assim, um destino de profundo abandono e desrespeito é selado, reforçando o peso da exclusão social.
Outra dimensão que as mulheres sentenciadas não percebem é que se pensarmos em termos de gênero (a própria condição de ser mulher), classe, etnia para as mulheres em geral, acrescentaríamos para análise a precariedade das oportunidades de trabalho, a exclusão social, os estigmas, os preconceitos, os traumas do aprisionamento, o desfacelamento das famílias dessas mulheres, etc. Então, teríamos múltiplas penalizações.
É preciso expandir as discussões em fóruns mais amplos sobre a aplicabilidade dos termos ressocializar, reintegrar, reinserir, reincluir, reabilitar, readaptar, reeducar como objetivo do aprisionamento. Certamente, as pessoas presas não estavam incluídas socialmente antes da prisão para serem novamente incluídas, como se propõe no prefixo “re” dessas palavras.
A volta ao convívio familiar e comunitário pode significar o retorno ao ambiente que possibilitou a entrada no mundo da criminalidade. Por isto, necessidades de alimentação, locomoção e documentação representam aspectos que estão diretamente vinculados à urgência de uma ocupação rentável. Se o crime foi motivado pela situação econômica nada está sendo feito para que tenham outra perspectiva de vida. Esta lacuna tem de ser sanada, se houver realmente a determinação de se implantar a meta de ressocialização dessas mulheres. Há que se pensar em instruí-las de algum conhecimento técnico que as prepare para o mercado de trabalho.
A maioria das entrevistadas tem como principal perspectiva de futuro conseguir uma atividade remunerada que lhes garantam uma renda para sustentar a família. Provavelmente, essa é a mesma expectativa de futuro que tinham antes de serem presas. Contudo, agora o caminho se torna mais difícil devido os antecedentes criminais. Por isso, entendemos que elas necessitam é de oportunidades, e como cidadãs, necessitam de propostas de políticas públicas com perspectiva de gênero que venham ao encontro de suas necessidades.
Leia o trabalho completo de conclusão de curso apresentado ao Departamento do Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em 2008: MULHERES TRIPLAMENTE PENALIZADAS – Perspectivas de Inclusão Social para Egressas do Presídio Feminino de Florianópolis.
Autora
Susane Amaral Vieira é bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e especialista em Políticas Sociais e Demandas Familiares pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL).
Fonte: Blogueiras Feministas.