Por Maria Martha Bruno, editora de Gênero e Número.
Durante o ato que reuniu dezenas de milhares de pessoas para comemorar a vitória de Alberto Fernandez nas eleições presidenciais de domingo (27), os argentinos que se espremiam nas ruas do bairro de Chacarita, em Buenos Aires, começaram a ir embora ainda no meio do discurso do presidente eleito. É que logo antes Cristina Fernandez de Kirchner havia falado. E durante suas palavras, a multidão se calou.
Chamada de “la jefa” (a chefa) pelos kirchneristas, ela estampava a maioria das camisas e bandeiras na comemoração e mais do que nunca segue como a principal referência entre as mulheres do campo de centro-esquerda no país.
No discurso, arremeteu contra a política neoliberal de Mauricio Macri e lembrou as Mães e Avós da Praça de Maio, presentes no ato. A relação dos kirchneristas com Cristina é de devoção, seguindo a tradição peronista que tem em Domingos Perón e sua primeira mulher, Evita, ídolos quase que intocáveis.
De volta à Casa Rosada, sede do governo federal que ocupou como presidenta entre 2007 e 2015, Cristina Kirchner impulsionou outros quadros femininos (e feministas) do peronismo, no país onde a paridade de gênero nas candidaturas legislativas se tornou realidade pela primeira vez nas eleições de domingo.
Além das eleições presidenciais, os argentinos votaram para prefeitos e governadores de algumas províncias (equivalentes aos estados brasileiros), além de renovar parcialmente o Congresso. Foram eleitos 130 deputados (quase metade do total de 257) e 24 senadores (um terço do total de 72).
Apesar da paridade, houve pouca mudança na composição de ambas as Casas. As mulheres, que ocupavam 39% da Câmara de Deputados e 42% do Senado, agora representam 40% e 38%, respectivamente. Das 130 vagas em disputa na Câmara, elas conseguiram 52, e das 25 no Senado, levaram nove.
Uma das vagas perdidas será justamente a de Kirchner, que deixará sua cadeira de Senadora (a ser ocupada por um homem), mas se tornará presidenta do Senado (cargo acumulado com a vice-presidência do país, segundo a lei). Ambas as posições lhe garantem a manutenção da imunidade parlamentar, o que também significa um alívio para a ex-presidenta, acusada em 13 processos relacionados à acusações de corrupção.
Estas foram as primeiras eleições gerais em que a lei de paridade de gênero foi colocada em prática. Ela determina que, na lista de candidatos de cada coligação para cargos legislativos nacionais, homens e de mulheres apareçam de maneira alternada e sequencial até completar o total de cargos em disputa – se uma província elege 35 deputados, como a província de Buenos Aires, a lista deve ter 35 candidatos.
Cristina Kirchner como inspiração
Embalada pela “onda verde” que ano passou quase descriminalizou o aborto no país até a 14a semana de gestação, Cristina Kirchner é também símbolo de uma política que mobiliza cada vez mais mulheres no país.
Jovens de lenços verdes proliferavam na comemoração da vitória da chapa kirchnerista Fernandez-Fernandez. Por outro lado, “ideologia de gênero” e outras pautas populares na agenda moral conservadora no Brasil praticamente não foram assuntos nas eleições no país vizinho. Os argentinos votaram com o bolso, motivados pelo aumento dos índices de pobreza na gestão do presidente Mauricio Macri.
Antes dos discursos de vitória de Cristina Kirchner e Alberto Fernandez, coube a Luana Volnovich abrir os trabalhos no comitê da coligação vencedora, anunciando os primeiros resultados parciais no país. Ela continuou no palco, ao lado de ambos, durante seus discursos.
Nascida no Rio de Janeiro em 1979, durante o exílio de seus pais por causa da ditadura argentina (1976-1982), Volnovich compõe o extenso grupo de jovens políticos de esquerda que nasceram da costela da militância kirchnerista. No domingo, conquistou seu segundo mandato como deputada federal, sendo o segundo nome mais importante da coligação de Kirchner para deputados federais pela província de Buenos Aires. O primeiro era um homem.
Nas eleições municipais, um dos principais destaques foi a feminista Mayra Mendoza, eleita aos 35 anos como prefeita de Quilmes, uma das cidades mais importantes da província de Buenos Aires (e onde nasceu a famosa cerveja).
Após a vitória, ela declarou: “Não se assustem com o que vou dizer. Isso não é contra ninguém. Vem aí um município feminista, dissidente, plural, diverso, inclusivo, nacional e popular”. Mendoza termina este ano seu segundo mandato como deputada federal.
Outro quadro relevante no cenário, com mais experiência que Mendoza e Volnovich, é Victoria Donda, eleita no domingo para o quarto mandato consecutivo como deputada federal, aos 42 anos. Alvo de fake news (que, no entanto, não foram um problema epidêmico nas eleições argentinas), Donda é filha de desaparecidos políticos e ajudou a impulsionar o projeto de paridade de gênero, aprovado em 2017.