Por Luiza Damboriarena e Tatiana Ribeiro (*).
Localizada na pampa gaúcha, Santana do Livramento, fronteira seca com a cidade de Rivera no Uruguai, conhecida como Fronteira da Paz, é um marco de práticas de integração antes mesmo da formação do Mercosul, onde dois povos vivem hermanados por culturas e afetos. Terra de grandes latifúndios, decorrente da distribuição de sesmarias, em sua maioria aos militares que ajudaram a demarcar as fronteiras nacionais, onde durante muito tempo imperou a lógica coronelista, identifica-se com a figura dos grandes estancieiros e generais dos séculos passados, muitos deles referenciados nos nomes das ruas da cidade.
Essa terra, sedutora por limites tão fluidos, que permitem uma convivência de reciprocidade entre os povos, se revela hostil quando colocada em perspectiva das relações de gênero. Uma vastidão de campo que exigiu certa brutalidade para domar as forças da natureza por aquele que teimou em aqui fazer morada, construiu também uma forma de ser estribada na figura do gaúcho platino, um tipo mestiço, campeiro, nômade e rebelde.
A partir de um revisionismo histórico, foi forjada a figura do gaúcho mítico riograndense, que se afasta do gaúcho histórico, sem terra e sem lei. Um tipo branco, heroico, elitista, em que o peão tenta se mimetizar com o patrão, e cultua a honra e a virilidade como virtude. Honra essa, muitas vezes lavada com sangue das mulheres indomáveis, insubmissas e rebeldes, que não aceitaram sua tutela e ousaram ser livres. A mulher que ronda o imaginário desse gaúcho tem apenas dois papéis sociais a desempenhar: o de sagrada ou de profana, sendo a primeira dócil e obediente, representada como “prenda”, e a segunda objetificada como um corpo útil para a diversão, representada como “china”. Uma é adorada e a outra demonizada, uma merece honrarias, a outra (se preciso for) o fio da adaga.
Pr’além dessa dicotomia existem as mulheres reais, que se permitem ser o que quiserem, inclusive ambas as coisas, sagradas e profanas, dóceis e combativas, de todas as cores e etnias, de todas as orientações sexuais, políticas e religiosas, de todas as classes sociais. Essas, que desafiam os modos de vida impostos pela cultura patriarcal, não andam sozinhas. Elas atravessaram a rua, deram as mãos para as hermanas uruguaias e formaram um bando diverso, unido por ideais comuns, construindo binacionalmente o movimento feminista.
No dia 8 de março, costumeiramente, nos reunimos no Parque Internacional (território comum, onde passa a linha divisória) para marchar juntas, de um país ao outro, exigindo nenhuma a menos/ni una menos e nenhum direito a menos/ni un derecho a menos. Embora a data tenha sido romantizada e mercantilizada pela mídia hegemônica através da exaltação da feminilidade, dos valores culturalmente relacionados a uma “natureza” feminina, como a maternidade, a pureza e a docilidade, características da figura da prenda, para nós – feministas, é uma data política. Símbolo da luta histórica das mulheres trabalhadoras contra o sistema patriarcal capitalista, pela igualdade de direitos e de oportunidades, pelo fim da exploração de classe e pelo fim da violência de gênero.
Em mais um ano pandêmico, no qual os protocolos sanitários dos dois países divergiram, não pudemos ocupar as ruas brasileiras com nossos corpos, mas ocupamo-las com mulheres que desafiaram as limitações de tempo, educação e renda, que conseguiram ultrapassar o destino que lhes foi traçado, muitas delas tornando-se inspiração e referência em suas áreas; com mulheres que tiveram coragem de sonhar e lutar por um mundo melhor para as novas gerações; e, também, com e por mulheres que tiveram seus sonhos abreviados pela violência de gênero. Como forma de reconhecimento, gratidão e honra à memória dessas, substituímos os caudilhos e generais, por seus nomes, nas placas das principais ruas da cidade de Santana do Livramento.
Nessa cultura fantasiosa, que venera a Revolução Farroupilha e tem como herói local um brigadeiro que leva nome de rua e museu, o mesmo personagem que entregou os Lanceiros Negros para a morte na batalha conhecida como Massacre de Porongos, nossas heroínas são: Dandara de Palmares, Tereza de Benguela, Olga Benário e Rosa Luxemburgo. Símbolos de luta e resistência contra as opressões de raça e classe, contra o autoritarismo das ditaduras, mulheres revolucionárias cuja liderança estratégica teve peso fundamental no enfrentamento aos inimigos.
Nesse território, onde se cultiva o hábito do mate e se vale do legado indígena sobre a lida de campo, promoveu-se o apagamento da memória dos minuanos e dos charruas, bem como a história dos negros, que com a força dos braços, construíram as cercas de pedras das estâncias dos coronéis.
O apagamento da riqueza histórico-cultural desses povos, menosprezado diante das colonizações de imigrantes europeus, acontece no silenciamento da sua religião, com a perseguição velada àqueles que ousam(ram) não cultuar o mesmo deus punitivista, do medo e do pecado, ao mostrarem que podem ter nenhum ou vários deuses, com referências na natureza ou na sua ancestralidade; no silenciamento da música daqueles que, com seus instrumentos e seu gingado, alegram nossa dança, ao som de seus cavaquinhos, repiques e tan tans, preteridos ao som da gaita e do guitarron; na desvalorização da sua estética, quando têm sua negritude questionada pelo desconhecimento das discussões sobre colorismo, e sua beleza desqualificada, enquanto o padrão socialmente aceito ainda é o branco europeu. Por isso homenageamos Clara Camarão, Sônia Guajajara, Carolina Maria de Jesus, Mãe Beata de Iemanjá, Lia de Itamaracá, Leci Brandão, Teresa Cristina e Dona Ivone Lara, como referências indígenas e negras que se destacaram na música, na literatura e na religião.
Ainda sobre arte e cultura, por esses pagos assistimos o tradicionalismo ser difundido monocraticamente, como cultura única que tem como personagem central a figura do gaúcho rio-grandense. O gauchismo é construído e difundido, fundamentalmente, por meio do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), entidade cívica que estabelece e regulamenta as diretrizes ideológicas dessa identidade específica, reforçada pelo Centro de Tradições Gaúchas (CTG) que mantém essa cultura viva e operante.
Para expandir os horizontes culturais e atentar para a riqueza e diversidade dessa terra, lembramos que a fronteira já foi um espaço cosmopolita, sobretudo na época de instalação do frigorífico Armour, que atraiu tanto os capitalistas ingleses e estadunidenses, como um proletariado de diferentes partes do mundo, especialmente imigrantes europeus anarquistas, sem deixar de destacar os povos árabes e sua importância no desenvolvimento do comércio local. Nessa época de abundância e efervescência cultural, passaram por aqui grandes companhias de teatro, existiram muitos cinemas, jornais, times de futebol, assim como movimentos sindicais e operários, a exemplo da Liga Comunista de Livramento, umas das primeiras organizações comunista do país. Rota de abrigo e passagem para exilados da ditadura, aqui também se estabeleceu uma rede clandestina de solidariedade, em tempos obscuros da nossa história.
Infelizmente, isso faz parte de um passado saudosista em que as mulheres foram negligenciadas como se não fossem agentes dessa construção histórica. Lamentamos que as mulheres que aqui atuaram não tenham sido historiografadas por essa hegemonia masculina no campo da escrita. Por isso, escolhemos estampar as ruas com mulheres artistas de inspirações variadas, como as brasileiras Tarsila do Amaral, Pagu, Fernanda Montenegro, Elis Regina, Leila Diniz e Petra Costa.
Nesse solo de tradição agropecuária, em que o trabalhador do campo é identificado majoritariamente com a figura masculina, é fundamental enaltecer o trabalho e a luta das trabalhadoras rurais, por sua relação profunda com a terra, como guardiã das sementes e esteios da agricultura familiar. Essas mulheres que lutam pela soberania alimentar, contra o capitalismo colonial e extrativista, constroem um feminismo camponês e popular, que defende a democratização da terra, a produção agroecológica e a preservação dos bens naturais. “É melhor morrer na luta do que morrer de fome”, é o lema de Margarida Alves, sindicalista do MST, que morreu lutando pelo reconhecimento dos direitos das/dos camponesas/es, ao denunciar abusos de fazendeiros. Sua história e sua luta inspiram a Marcha das Margaridas, criada em 2000.
Enquanto o Rio Grande do Sul costuma ser lembrado por grandes líderes históricos, de orientações políticas diversas, mas com poder exclusivamente masculino, tais como Bento Gonçalves, Getúlio Vargas, João Goulart, Leonel Brizola, a presença feminina nesse campo ainda é tímida. Além disso, parte dela é pouco comprometida com pautas progressistas voltadas para políticas públicas para as mulheres. Desde a deposição da primeira mulher eleita pelo voto popular à Presidência da República, a rede de enfrentamento da violência contra a mulher começou a sofrer um desmantelamento, com o fim do Ministério das Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos, pela redução de orçamento e pela precarização dos serviços prestados.
Dilma Rousseff, assim como Marielle Franco, mulheres que dedicaram boa parte de sua existência e de seus mandatos, nas instâncias políticas as quais ocuparam, a essa luta. E, por ousarem se aventurar num meio em que impera o poder masculino, tiveram suas trajetórias interrompidas, uma sendo assassinada e a outra deposta por um golpe parlamentar misógino. Também destacamos as gaúchas Manuela Dávila, Fernanda Melchiona e Maria do Rosário, como referência na luta pelos direitos humanos e aceno de que aqui também há coragem e bravura feminina, numa anunciação de que as mulheres vão ocupar todos os espaços de poder e decisão, nos quais tentam legislar e controlar nossos corpos.
Embora nessa cidade tenhamos revertido as estatísticas, ao eleger a primeira prefeita mulher, a mesma nos rouba a esperança quando, no segundo mês de mandato, autoriza a demissão de 59 profissionais da área da saúde, em pleno período de pandemia, do único hospital que atende pelo SUS. Por isso, também exaltamos todas as mulheres que estão na linha de frente no enfrentamento a Covid-19. Lembramos de Ana Nery, primeira enfermeira do país, Débora Diniz, antropóloga referência na discussão sobre igualdade de gênero e saúde pública no Brasil durante epidemias; Margareth Dalcomo, médica e pesquisadora da Fiocruz referência nos estudos para o desenvolvimento da vacina. Em tempos difíceis, de prejuízos econômicos e psicológicos, também destacamos Nise da Silveira, por sua contribuição na luta antimanicomial por seus métodos agressivos e pioneira ao propor a terapia ocupacional.
Mesmo com a ascensão das mulheres nos mais variados segmentos, a cultura gaúcha ainda é inscrita na supremacia masculina, na figura do homem cisgênero heterossexual de valores belicistas. Toda identidade que se afasta desse padrão é vista como negativa e/ou inferior. Porém, é o trabalho doméstico, invisibilizado e não remunerado, que coloca as mulheres em situação de desigualdade e vulnerabilidade. A divisão sexual do trabalho, na qual eles atuam na esfera produtiva (trabalho formal remunerado), e elas na esfera reprodutiva (trabalho doméstico não remunerado), é a base material da desigualdade de gênero. É desse cuidado do lar, dos filhos e/ou idosos, como aptidão e responsabilidade feminina, que nasce o termo “mulher prendada”, digna do sobrenome do marido.
Apesar dos avanços já conquistados, que permitiram às mulheres ingressar no mercado de trabalho formal, exercer atividades profissionais remuneradas e conquistar independência financeira, o trabalho doméstico ainda não deixou de ser sua responsabilidade, fazendo com que acumulem duplas, ou até mesmo triplas jornadas de trabalho. É nesse sentido que o trabalho está no centro da luta feminista. Por isso escolhemos homenagear mulheres trabalhadoras, como a sindicalista Laudelina de Campos Melo, como a ex-empregada doméstica e relatora da PEC das domésticas, a deputada Benedita da Silva e ainda a soldado Quintana, que perdeu a vida em decorrência de um acidente de trânsito, no exercício de sua função como policial militar.
A cultura patriarcal, ordem centrada na descendência patrilinear, na qual a mulher foi submetida historicamente ao poder masculino – inicialmente do pai e depois do marido – é o que fomenta a violência de gênero, alimentados por sentimentos de posse, ódio e desprezo pelas mulheres, causando assim sua objetificação para uso e possível descarte. Até bem pouco tempo atrás, existia na literatura a expressão “crime passional”, aquele motivado por incontrolável emoção, sugerindo abertamente que é compreensível/justificável matar por amor, porém, quem ama não mata! É assim que, compreendidas como propriedade, os homens se sentem autorizados a agredir seus corpos, exercendo a violência como um valor. Além disso, legitimam seus atos em defesa da honra (tese proibida recentemente pelo STF, dia 01/03/2021), isto é, como argumento para justificar a violência de gênero que em muitos casos resulta em feminicídio.
É pela honra delas e não deles, que lembramos de Deisi Charopen Belmonte, 23 anos, assassinada e esquartejada pelo ex companheiro, o açougueiro Xirica; Laura Cabrera, 40 anos, asfixiada até morte por seu companheiro; Meire Ponte Muniz, 40 anos, assassinada com 14 facadas pelo ex companheiro; Vivian Martinez Miranda, que teve mais de 50% do corpo queimado pelo namorado; Mariana Ivanovich, 37 anos, torturada durante três dias pelo companheiro; Marcia Enise Ferraz Carvalho, 22 anos, assassinada a tiros a caminho do trabalho pelo ex noivo que não aceitava o fim do relacionamento, Angela Renata Dornelles, 22 anos, grávida, assassinada pelo pai do bebê com 12 tiros no bairro Prado, Rosa Maria Pereira, 57 anos, cadeirante, morta com um tiro, pelo companheiro em Rivera, Caren Cristina Cabreira, 34 anos, assassinadas a tiros pelos seu ex- companheiro, na frente de casa, quando saía para buscar a filha na escola. Todas essas mulheres eram o amor da vida de alguém, foram arrancadas de suas famílias e tiveram seus sonhos interrompidos exclusivamente pelo fato de terem nascido mulheres. Cabe lembrar que não são só as mulheres as vítimas dessa intolerância de gênero, todas identidades que se opõem ao masculino são, em alguma medida, alvo de violência dessa socialização masculinista, que não reconhece as diferenças, mais que isso, recusa a condição existencial do outro. Nesse sentido, é necessário resgatar o episódio do incêndio criminoso, no CTG Sentinela do Planalto, de Santana do Livramento, ao se dispor a celebrar uma cerimônia de casamento coletivo, dentre os quais uma era homoafetiva. A identidade gaúcha de moral conservadora não tolera confundir-se com as identidades LGBTQIA+. Por isso, lembramos mulheres trans, as que têm o corpo mais odiado e atacado da sociedade patriarcal, para também compor esses espaços: Keron Ravach, Laerte, Pabllo Vittar.
É assim que o gaúcho dessa terra, certo da impunidade e da cumplicidade de uma sociedade patriarcal, não se constrange em entoar versos como “ajoelha e chora, quanto mais eu passo o laço muito mais ela me adora”. Nesse sentido, para afirmar que não nos colocarão de joelhos, escolhemos enaltecer mulheres que tentam exorcizar a violência doméstica, seja por meio da música como faz Elza Soares, quando canta “cadê meu celular eu vou ligar pro 180 […] cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”, seja por meio da lei 11.340, inspirada na história de Maria da Penha na busca de justiça contra seu agressor.
Ressalta-se que infelizmente, a Lei de 2006 ainda se mostra insuficiente. Somente com uma rede de acolhimento e proteção será possível enfrentar a pandemia de feminicídios, o que envolve, necessariamente, a ampliação de delegacias especializadas para mulheres; assistência jurídica, psicológica e de saúde; maior humanização no atendimento às vítimas pelos órgãos competentes; discussão das questões de gênero nas escolas; celeridade e efetividade no processo de punição dos agressores.
Tentamos mostrar com esse escrito, como a condição do gauchismo tradicional opera na violência simbólica das relações de poder entre homens e mulheres. O quanto o regionalismo comporta um espectro local de hábitos e costumes, que se mistura no imaginário social e é cooptado para produzir, reproduzir e perpetuar a forma e o conteúdo que organiza o patriarcado. O conservadorismo geracional opera a partir de ritos cotidianos que alimentam e mantêm o preconceito e a violência na qual homens e mulheres tornam-se vítimas e algozes ao mesmo tempo. Nessa toada, ninguém sai ileso, o prejuízo provocado por essa cultura é perverso da mesma forma com os homens, ao exigir um padrão de comportamento rígido que reprima suas vulnerabilidades, suas delicadezas, seus afetos. Ou seja, tudo aquilo que lhe faz gente.
Não se trata de demonizar o gauchismo, sabemos que em outras regiões do país também encontramos essa condição operante entre as relações humanas, porém tal discussão ainda é importante porque é ele que constitui a força que move o patriarcado. Trata-se de propor a construção de práticas de liberdades, capazes de inventar novos modos de existência e novas masculinidades, levando-nos assim a desconstruir e ressignificar o gaúcho, para que possa reconhecer a mulher como sujeito.
Tal desconstrução, que passa necessariamente pela arte, educação e cultura, exige compreensão e transformação da realidade, desde uma prática teórica ancorada, principalmente, no pensamento de autoras como Lélia Gonzalez que nos mostra a importância de descolonizar a linguagem quando nos apresenta o pretuguês, uma vez que o feminismo precisa ser antirrascista; com Silvia Federici aprendemos que o que eles chamam de amor nós chamamos de trabalho não pago; com Simone de Beauvoir entendemos que tudo aquilo que nos define, nos sujeita e nos priva de liberdade; com Angela Davis que a liberdade é uma luta constante, com Rosa Luxemburgo compreendemos que só seremos totalmente livres quando formos socialmente iguais e humanamente diferentes, por fim, com bell hooks aprendemos que é preciso transgredir. Mas, para transgredir, precisamos estar juntas e organizadas.
Como feministas e fronteiriças produzimos esse escrito para destacar a potência desse ato pela importância de ocupar e colorir espaços públicos com mulheres cujos legado e memória merecem o devido reconhecimento e valorização. Apesar de sabermos que há um sem número de mulheres que poderiam ter sido lembradas e dada a impossibilidade de contemplar todas elas, entendemos que todas fazem parte das mulheres que somos hoje.
(*) Mulheres feministas e fronteiriças