Por Victor Farinelli.
O Chile já tem uma Assembleia Constituinte funcionando. A cerimônia de posse dos 155 representantes eleitos no dia 16 de maio ocorreu neste domingo (04/07) em meio à manifestações no Centro de Santiago, tanto na Praça da Dignidade, tradicional ponto de protestos na capital chilena, quanto no entorno do edifício do Antigo Congresso Nacional, local onde o evento aconteceu – o atual Congresso do país está sediado na cidade de Valparaíso, mas a Assembleia Constituinte vai trabalhar na capital.
A primeira grande decisão da Assembleia foi a eleição da Presidência, e o resultado determinou uma importante novidade para o país, já que a escolhida foi a linguista e acadêmica mapuche Elisa Loncón Antileo, uma mulher eleita pelas comunidades de povos indígenas. Ela teve um total de 96 votos, o que representou quase um triplo dos votos do segundo mais votado, que foi Harry Jürgenssen, representante da direita, que obteve apenas 33 votos.
Após ser eleita, Loncón iniciou oficialmente os trabalhos falando em mapudungun, o idioma oficial do povo mapuche. “Esta vitória é uma vitória dos povos indígenas, das mulheres e da diversidade sexual. Esta Assembleia está feita para criar um Chile plurinacional, um Chile sem discriminação e com respeito à mãe terra. Este sonho nós vamos começar a construir agora, de refundar o país”.
O Chile já tinha feito história ao determinar por lei a igualdade de gênero, o que fará desta a primeira carta magna da história escrita por um número quase igual de homens e mulheres – entre os representantes há 78 homens e 77 mulheres. Agora, terá também uma mulher indígena, representante do povo mapuche, presidindo a Assembleia.
Inicialmente, a Assembleia chilena terá nove meses para redigir a nova Constituição chilena. Esse prazo pode ser estendido por mais três meses caso os constituintes decidam que é necessário mais tempo, mas não poderá ultrapassar esse limite. Um mês após finalizado esse trabalho, deverá haver um novo plebiscito, para que a população decida se aprova ou não essa nova carta magna.
Repressão do lado de fora do Congresso
A jornada começou com manifestações realizadas em plena alvorada por vários setores participantes da Assembleia e seus apoiadores. Os povos originários realizaram uma cerimônia religiosa ecumênica, reunindo representantes de diferentes etnias.
Uma das sacerdotisas que comandou o evento foi justamente a machi Francisca Linconao, ex-presa política e líder religiosa do povo mapuche, que foi eleita para a Assembleia Constituinte – também foi a mais votada entre os constituintes dos povos originários e a mais celebrada quando foi chamada para assumir o cargo, sendo aplaudida por mais de um minuto.
Após a cerimônia, os povos originários se dirigiram à Praça da Dignidade, no Centro de Santiago, epicentro das manifestações de outubro de 2019, marco inicial do processo que levou até esta Assembleia. Ali se encontraram com representantes de outros setores mais progressistas da constituinte, como o Partido Comunista, a Frente Ampla e a Lista del Pueblo.
Os representantes constituintes desses grupos concordaram em realizar uma marcha simbólica desse local que marcou o início da revolta social chilena de 2019 até a sede do Congresso, onde será realizada a Assembleia Constituinte chilena.
A marcha aconteceu sem a autorização do Ministério do Interior, e, por isso, parte dos manifestantes presentes, que eram apoiadores do Partido Comunista, da Frente Ampla e de organizações de povo originários, foram atacados por policiais que usaram bombas de gás lacrimogêneo contra os manifestantes.
Esses manifestantes foram responsáveis por cânticos nos quais cobravam o governo do presidente Sebastián Piñera pelas violações aos direitos humanos cometidas pelos Carabineros (polícia militarizada) durante a revolta de 2019, especialmente os casos de estupros e lesões oculares parciais ou totais – os dois casos mais emblemáticos são os de Fabiola Campillay e Gustavo Gatica, que perderam a visão de ambos os olhos.
Também se reclamou pelos detidos durante a revolta social e que muitos setores consideram presos políticos, já que se encontram em prisão preventiva há mais de um ano e meio, sem que um julgamento resolva a sua situação.
Alguns setores progressistas, como os representantes da Lista del Pueblo, exigem que esses presos sejam libertados e defendem que essa seja uma posição adotada oficialmente pela Assembleia Constituinte. Durante a sessão, vários desses setores entoaram cânticos pedindo “libertar, libertar os presos por lutar”, inclusive interrompendo a execução do hino nacional do Chile, o que gerou fortes protestos dos setores de direita.
Os grupos progressistas também reclamaram que havia familiares de constituintes entre as pessoas que estavam sendo reprimidas pela polícia, o que obrigou a interromper a cerimônia. Representantes do Partido Comunista e da Lista del Pueblo exigiram do Ministério do Interior a retirada do batalhão de choque da polícia.
Alguns deles chegaram a deixar o Congresso e foram até o local da manifestação onde estavam os veículos do batalhão de choque, exigindo sua retirada do local. A comunista Valentina Miranda, representante mais jovem da Assembleia (com apenas 20 anos), denunciou que “inclusive” os constituintes foram “reprimidos e golpeados por alguns policiais quando pedimos a saída dos veículos repressores”.
“O Rodrigo [Rojas, representante da Lista del Pueblo] foi atacado com gases [lacrimogêneos], e nós não vamos aceitar isso. O Chile mudou e por isso não podemos mais aceitar que as coisas aconteçam enquanto o povo é violentado, esse tipo de hipocrisia não tem mais lugar no novo Chile”, disse.
A cerimônia foi retomada por volta das 12h30 (hora local), quando o Ministério do Interior do Chile publicou um informe dizendo que não havia pessoas presas nem lesionadas do lado de fora do Congresso. Entretanto, alguns representantes da Assembleia afirmaram que havia reportes sobre ao menos uma pessoa que havia sofrido um trauma ocular e que teve que ser hospitalizada.
Ausência de Piñera
Por sua parte, o governo nega que existam presos políticos ou que foram cometidas violações aos direitos humanos durante a revolta de 2019. Inicialmente, o protocolo desta abertura da Assembleia Constituinte previa a participação do presidente Piñera, ao menos para realizar o discurso de inauguração dos trabalhos.
No entanto, o mandatário decidiu não participar do evento. A imprensa local especulou que esta decisão se deve à baixa popularidade do Chefe de Estado que conta com menos 10% de apoio da cidadania, e também pela baixa participação do seu setor político: os partidos de direita elegeram apenas 20% dos representantes da Assembleia.
Piñera preferiu fazer uma transmissão em rede nacional na noite do sábado (03/07), na qual expressou seu desejo de que “a unidade, o diálogo, o respeito e a paz sejam parte da criação da nova Constituição”.
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