Por Joanna Burigo.
Nos estudos de gênero, ‘cis’ vem do prefixo latino que significa ‘do mesmo lado’.
“Mulher cis” é uma das tantas expressões do léxico dos estudos de gênero que são, ao mesmo tempo, local e ferramenta de disputa.
A expressão é usada para designar fêmeas identificadas/que se identificam como mulheres e é bastante problematizada por pessoas que cabem em seu enunciado.
Não posso dizer que não compreendo.
A saber, sou mulher cis. Quando nasci, a partir do que viram, ou do que não viram, me designaram menina. Nunca me ocorreu que o fato de que me “liam” como menina não correspondia à forma como eu mesma me “lia” (e estou segura de que a congruência entre o olhar do outro e o meu próprio sobre mim, neste sentido estrito, é fator positivo na constituição da minha subjetividade).
Tendo dito isso, é certo que também sempre estive atenta e vulnerável às violências a que meninas e mulheres são expostas por serem meninas e mulheres: assédio, misoginia, micromachismos, macromachismos, violência letal, sexual e simbólica, para nomear alguns.
Sempre vivi e ainda vivo sob o jugo dos estereótipos e normas, opressões, injustiças e desequilíbrios nas relações com homens, relações que estão aí, em operação e bem visíveis, desde muito antes de sermos denominadas mulheres cis.
Me identifico como feminista bastante por causa disso tudo, e outro tanto para resistir a isso tudo, e outro tanto ainda para reconfigurar isso tudo.
É também por isso tudo que compreendo o incômodo que o termo “cis” pode causar. Falar em mulheres, até pouco tempo atrás, parecia significar falar apenas sobre mulheres cis.
Para um grupo tão controlado e silenciado historicamente, e justamente ao redor e por causa do qualificador “mulher”, a demanda pelo qualificador extra “cis” pode soar como uma injúria.
Mas vale ressaltar que “cis” não é ferro em brasa, e sim uma palavra, que carrega significados em disputa, e que existe, quer se goste dela ou não.
Até onde sei ninguém tem obrigação de usar o termo “cis”, e por óbvio é preciso resistir a quaisquer imposições violentas de seu uso. Da mesma forma, não é necessário rechaçar o termo ou demonizar quem o usa. Ele bem serve como qualificador analítico.
Do mesmo lado
Há uma interpretação panfletária da palavra “cis” que, volta e meia, como é característico da era da pós-verdade, circula pela internet.
De acordo com esta interpretação, a expressão significa “comfortable in skin” – “confortável na pele”, em inglês inculto – e supostamente assinalaria que mulheres nascidas fêmeas estão em plena harmonia com sua identidade de gênero.
Embora a expressão possa ser usada para articular certas relações identitárias, é falacioso atribuir a esta interpretação do termo seu status de origem.
O “cis” dos estudos de gênero não vem do acrônimo de uma expressão coloquial, mas do prefixo que, em latim, significa “do mesmo lado”. Este prefixo é utilizado em outras esferas da linguagem, não apenas no contexto dos estudos de gênero.
Um exemplo é o gentílico “cisalpino”, palavra romana utilizada para denominar os habitantes “do lado de cá” dos Alpes.
Na química orgânica a isomeria geométrica é também conhecida como isomeria cis-trans.
Desconheço seus usos, porém compreendo sua lógica: isomeria cis é aquela cujos substituintes estão “do lado de cá” da ligação dupla (dois pares de elétrons) ou dos cicloalcanos (compostos de hidrogênio e carbono), e isomeria trans é aquela cujos substituintes estão “do lado de lá” da ligação dupla e dos cicloalcanos.
O sufixo cis da palavra romana denota que o “do lado de cá” dos Alpes equivale à perspectiva de Roma. Na isometria, a baliza é um lado ou outro das ligações duplas e cicloalcanos.
Afinal, o que é gênero?
O que significaria o “lado de cá” no contexto de gênero? Isso abre outra pergunta: o que é, afinal de contas, gênero?
Pode uma palavra significar, ao mesmo tempo, um sistema, as formas como nos organizamos simbolicamente entre femininos e masculinos, e a teoria crítica e campo de estudos interdisciplinares sobre este sistema?
Gênero para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra é um artigo de Donna Haraway, no qual ela confessa ter sido tonta por aceitar um convite para descrever o vocábulo para o famoso pai-dos-burros.
O que segue essa confissão é uma minuciosa introdução teórica que demonstra a complexidade de se pensar em gênero como termo.
O texto, que é de 1991 e passeia por uma vasta coleção de perspectivas teóricas sobre gênero e sexo, evidencia as muitas tentativas de definir ambos, e revela a construção, erros, acertos e ausências de suas gramáticas.
Desde que o feminismo questionou a categoria “mulher”, seus significados vêm se transformando. E as categorias “mulher” e “cis” não são os únicos lugares e ferramentas de disputa de gênero.
O conceito de “privilégio cis” também é bastante contestado. Afinal, quais seriam as vantagens de ser mulher cis num mundo misógino?
A escolha militante entre o uso de expressões como “violência de gênero” X “violência masculina”, ou ainda “gênero nas escolas” X “escola sem machismo” também apresentam argumentos aparentemente conflituosos: por um lado, ao dar enfoque a gênero, dilui-se a questão da violência masculina; por outro, machismo e violência masculina não dão conta de articular todos as opressões de gênero.
O próprio feminino-como-linguagem vive em disputa.
Pairam interrogações nos feminismos. O que afinal define o feminino? Seria ele somente um conjunto de normas aprisionantes? O que fazer com o feminino? Ele precisa ser aniquilado? Sendo assim, aniquilaríamos também o masculino? E como faríamos uma e outra coisa, ou a distinção entre elas?
E quando feminilidades e masculinidades são deslocado dos seus corpos “de origem”?
Este deslocamento revela a ruptura entre os códigos de gênero e a normatização de gênero pautada na interpretação de corpos, ou a reforça?
Quem pode e quem não pode se utilizar dos códigos de gênero, e por que?
A lista é imensa.
Haraway conclui que a decisão de manter ou refutar categorias de gênero – mulher, homem, trans, cis, por exemplo – é uma insistência política, e cauciona que explicações da categoria social “gênero” não são tarefa simples, e dependem muito da historicização de categorias como sexo, carne, corpo, biologia, raça e natureza.
Disputas não são apenas pelas palavras, mas pelo que elas significam, e para quem. Se procuro por pontes entre as perspectivas dos já marginalizados discursos feminista e de gênero, é porque a investigação dos significados de seu léxico para além de prescrições e regras me parece mais profícua do que travar infinitas e circulares batalhas semânticas entre minorias.
Gosto também de pensar que de algum jeito isso corrobore com a utopia feminista de Donna Haraway, na qual se pode “falar todas as línguas de um mundo de cabeça para baixo”.
Conversemos, então, sem medo sobre a política sexual das palavras de gênero.
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Fonte: Carta Capital.