Depois de seu surgimento, já era difícil imaginar a Mulamba dentro de um contexto que não fosse o de resistência, de afronte e existir político. Suas premissas eram expressas nos singles, entrevistas e apresentações da banda. E se o caldeirão do país entornou após a eleição de Jair Bolsonaro ao cargo mais alto em âmbito federal, o sexteto curitibano assumiu um papel de protagonista do caos. Impossível negar: a resistência também será cantada.
O homônimo Mulamba chegou cheio de expectativa. Se a pungência das exibições do grupo dava indícios de um álbum combativo e poético, ele chegou no início de novembro para comprová-los. Ao mesmo tempo, precisou agir como uma compressa fria na alma torturada pelo pleito eleitoral. Sob esta perspectiva, o grupo foi muito feliz na costura das nove faixas, fazendo um registro de forte apelo discursivo, cujas canções expressam uma poética fruto do seu tempo, enquanto navegam pelos mares antropofágicos nas composições melódicas.
Não há espaço para querer calibrar se há uma tentativa do grupo (e dos artistas de sua mesma geração) em firmar um “neo-antropofagismo” musical, mas é fato que se mostram muito mais dispostos a abraçar o descompromisso com soar de modo específico. E esse é o ponto em que chegamos à impossibilidade da rotulação da Mulamba – banda e disco. Como expressam na faixa-título, são “o que não basta, não se entende”, são furacões. O sexteto curitibano também acrescenta ironia no processo que acaba por ressignificar o que é ser “mulamba”. Este passa por encarar a forma como é vista, a explicitação desse eixo sexista, machista e opressor, e a transformação deste cenário a partir da compreensão de uma potencia latente e sempre presente.
Algo semelhante ocorre na faixa “Espia, Escuta”. A ressignificação ganha novos contornos com a aglutinação de gêneros musicais ainda marginalizados. Essa antropofagia musical encontra eco no estabelecimento de um neologismo que procura, de maneira progressiva, dar sentido a um novo feminino. E para quem acredita, ao ouvir o disco, que este “embucetamento” acaba quando Mulamba toma um rumo mais pop, em justaposição a um afropunkfunk tão incisivo, é necessário se debruçar sobre as faixas sobre um viés mais amplo. Ambas as canções olham para o amor como um signo do cuidado, uma forma de abraçar o coletivo, um encurtamento da rota da sororidade. A roupagem pop e folk dá, também, demonstrações da tentativa de dialogar com diferentes níveis de público, sem que faça a mensagem de refém. No fim, até a demonstração poética do amor é uma forma de mensagem política, uma contraposição a tempos de ódio.
O grupo foi muito feliz na costura das nove faixas, fazendo um registro de forte apelo discursivo, cujas canções expressam uma poética fruto do seu tempo, enquanto navegam pelos mares antropofágicos nas composições melódicas.
E Cacau de Sá, compositora de grande parte das canções de Mulamba, joga o ouvinte em “Interestelar” justamente com o intuito de mostrar a marca forte da representatividade feminina que permeia todo o disco. O olhar feminino sobre o feminino. Nota-se muita gentileza e sensibilidade no olhar, mas também a procura por criar uma representação mais crível dessas mulheres que nos cercam.
Nas discussões que se avizinham, o olhar de movimentos e causas sociais para além do ponto nuclear destes tem tomado cada vez mais espaço, e isso não é diferente para o grupo. Nessa força que a mulher representa, a mãe natureza (“Lama”) também é um signo dessa força sobre a qual recai a necessidade do olhar, do cuidado e da preservação. Sobre ela também age o peso da mão do homem enquanto elemento opressor. Ideia semelhante a que Cacau torna a dar em “Vila Vintém”, esse lar como eixo central de uma vida de preservação e resistência.
A construção lírica e melódica de Mulamba é feita de modo que seus conceitos sobre o feminino, o ser mulher e de que forma o medo de exercer essa existência permeia suas vidas sejam assimilados da maneira mais direta pelo público, inclusive na densidade de uma música unicamente instrumental. Um disco que mostra, a quem ainda não havia entendido, a que vieram essas mulheres. Mais atual impossível.