Por Marcelo Luiz Zapelini, para Desacato.info
Foto: Aline Justino
Às 4h da madrugada de sexta-feira, dia 2 de junho, a estudante da UFSC Eduarda da Silva e seus colegas já estão no Centro de Ciências Agrárias. Eles montam a estrutura de bambu do quiosque da feira orgânica que acontece ali semanalmente e organizam os produtos trazidos por agricultores de Florianópolis e região. “Eu amo essa feira. Tem uma energia muito boa. É uma utopia acontecendo”, diz a estudante da segunda-fase de biologia.
Enquanto fala, seus olhos brilham. Talvez porque refletissem sua própria utopia.
“Eu me sinto honrada em aprender para depois difundir essa ideia lá no meio oeste”, contou.
Em Campos Novos, município de onde Eduarda veio, os agricultores não têm oportunidades como essa, disse, pois lá não existem feiras.
A feira é um sucesso em vendas. A estudante-feirante puxa de cabeça os cálculos do que vendem em média: 90kg de maçã, cinco ou seis caixas de alface, muita cebola, umas quatro caixas de banana. Para garantir a diversidade, os agricultores se organizam. Seu Paulo traz folhas, dona Jane traz flores, o Anderson traz cenoura, o Gedean tem uma agrofloresta maravilhosa de bananas.
A feira é um sucesso em relações humanas. “Têm clientes que vem toda sexta-feira de bairros muito distantes porque têm confiança”. Há uma ligação muito próxima entre todos os envolvidos. “Nossa ligação com o agricultor, nossa ligação com o alimento, nossa ligação com o consumidor e a ligação dele com o alimento e com o agricultor”, disse a estudante. O consumidor aprende porque as folhas estão pequenas, aprende sobre os ciclos da produção quando faltam certos alimentos, aprende sobre o preço justo.
A feira é um projeto de extensão da universidade, uma parceria entre Laboratório de Comercialização da Agricultura Familiar e o Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo (Cepagro). “O Cepagro dá suporte e apoio à rede de agricultores. Por exemplo, a dona Catarina que está ali vendendo Mandioca…”, apontou Eduarda, que precisou encerrar a entrevista para pesar as batatas doces de um cliente que esperava no caixa.
Dona Catarina Francisco Gelslenchter, de Angelina, cuidava de suas mandiocas atrás de uma mesa. Com essas raízes, ela faz farinha polvilhada e isso marcou a sua vida. “Não sei, às vezes as coisas vão acontecendo. Na verdade, eu caí aqui dentro, eu me envolvi e adorei. Tem a rede Ecovida, tem a rede de engenhos, tem a questão da produção orgânica, tem o Slow Food”, contou ela.
Aconteceu, também, que essa descendente de alemães viajou duas vezes para o país dos italianos graças à sua farinha. “Fui convidada e fiquei emocionada na primeira vez que eu fui. Lá todo mundo apresentando uma coisa ou outra e pensei: com farinha ninguém vai se importar, né? Daí foram uns Chefs e fizeram um pirão com camarão. Gente! Era um panelão enorme. Rasparam o panelão e depois rasparam a concha”, contou transpirando orgulho.
A iniciativa nascida na Itália em oposição à chegada do Mac Donald’s no país é uma rede entre produtores, chefs de cozinha e consumidores, que são os coprodutores, porque eles estão conhecendo o que estão comprando: um alimento bom e gostoso; limpo, feito sem agrotóxicos de maneira harmônica e comercializado de forma justa para o trabalhador”, explicou Giselle Miotto, facilitadora da Slow Food na Região Sul.
A educadora, que encontrou o melhor dos mundos ao juntar educação e agricultura sem deixar sua origem urbana, explicou que os pratos locais mais singelos estão no radar da organização. É o caso da bijajica, um bolo de massa de mandioca.
“Havia três produtores aqui do litoral de Santa Catarina que faziam. Daí o chef de cozinha Fabiano Gregório, foi lá e aprendeu a receita. Quando ele é convidado para fazer coquetéis, ali aparece a bijajica. Isso é muito interessante”, contou Giselle, que ainda ressaltou: o chef nunca deixa de divulgar a origem da receita. É um incentivo ao comércio local do produto.
Enquanto alimentos do patrimônio agroalimentar local ganham espaço em lugares inesperados como países estrangeiros e eventos da alta sociedade, uma verdadeira revolução acontece na periferia transportada em baldinhos, pelas mãos de mulheres como Cíntia da Cruz, que junto de seu grupo vendia os pacotes de adubo orgânicos certificados.
“Tínhamos uma epidemia de leptospirose no bairro. Com a ajuda do doutor Renato, do posto de saúde e parceira com Cepagro buscamos a solução para o problema: tirar a comida do rato”, disse Cíntia. Os resíduos orgânicos seriam recolhidos e processados até virarem adubo, que seriam distribuídos em baldes, na sugestão do médico. Nasceu a Revolução dos Baldinhos.
“A gente tem a troca do resíduo pelo adubo, levando a pessoa a plantar e colher, nosso intuito é a agricultura urbana, fazendo o ciclo completo dos resíduos. A maioria das pessoas da comunidade veio do campo e não tem lugar para plantar. Então a gente mostra possibilidades: vasos, privadas, gabinetes de computador, garrafas”, explicou a líder.
Nos primeiros meses de sensibilização, há nove anos, apenas cinco pessoas aderiram à proposta. Uma delas foi Ana Karolina da Conceição, que de muito curiosa pediu para ir ver o que “aquelas loucas faziam”. Foi um caso em que a curiosidade matou o rato, por assim dizer. Ao mesmo tempo ela redescobriu a comunidade chamada Chico Mendes, umas das nove do bairro.
“Nesse dia, eu fiquei fascinada. Comecei a ser voluntária e fazer as visitas domiciliares. Comecei a ver que além da coleta de resíduos era uma coisa que se tinha muito carinho. Os moradores abriam as portas, faziam um cafezinho sabendo que íamos fazer a visita. Então fui pegando um amor por aquilo”, revelou Ana, tida como “coordenadora comunitária” pela vizinhança.
A verdade é que o grupo, ainda informal trabalha gratuita e horizontalmente. Mas o plano é juntar pelo menos 20 pessoas para até o final do ano formalizarem uma cooperativa de catadores.
Coletando cerca de duas toneladas de resíduos sólidos a revolução precisa dar um passo adiante para melhorar a infraestrutura e conseguir um terreno maior do que é cedido por uma escola pública local. Há fila de espera de pessoas interessadas em participar das trocas e de grupos de visitantes nacionais e estrangeiros interessados em conhecer o projeto.
Elas produzem sabão e sabonete com óleos de cozinha usados, e como os adubos, esses insumos voltam para os moradores gratuitamente. E ainda doam roupas: “é o shopping dos pobres”, brinca Ana.
Do outro lado da feira, a artesã Elisa Lo Russu, escolhe laranjas em uma caixa, depois passa para a seção de verduras. Ela está aproveitando a oportunidade porque nem sempre pode vir da Lagoa da Conceição de ônibus apenas para a feira. Mas sempre que pode, faz questão. “Os produtos são muito bons e o preço é mais acessível que em outras feiras”.
A feira orgânica não consegue concorrer com os preços do sacolão, mas o investimento vale à pena para Elisa. “A gente está sendo envenenado, né? Muitas doenças são causadas por isso. Conheço bastante gente que tem intolerância ao glúten, mas parece intolerância ao agrotóxico. Pois pode comer trigo biológico que não dá nada, mas ao trigo convencional tem intolerância”, ponderou essa cliente balançando a sacola para fazer caber mais um pouco de legumes.
Uma voz alta ecoa na feira e pede atenção de todos. A diretora administrativa do Cepagro, Maria Dênis Schneider, interrompe sem querer a entrevista para anunciar o início de uma oficina ao lado da feira; para lembrar que há uma mesa de degustação gratuita, o que incluiu suco, tão exótico como tradicional, de butiá misturado com caldo de cana, e; para agradecer a presença de pessoas como os personagens desta reportagem.
Convidados especiais para esta feira que comemora três anos de existência. Por isso mais tendas, mais pessoas trouxeram seus produtos e mais atividades foram realizadas.
O técnico do Cepagro, Charles Onassis Peres Lamb, estava muito satisfeito com o resultado. Ele contou que apesar de todos aqueles produtores estarem ali pessoalmente apenas hoje, os produtos de muitos deles chegam à feira a pedido do grupo Flor do Fruto, que toca a iniciativa.
“Isso é estar em rede. A rede Ecovida oportuniza isso. Até perguntei para o pessoal que está no caixa: ’baixou muito a venda de vocês hoje’? Disseram: ‘não, até aumentou’. Pode ver, as caixas estão vazias”, apontou para as que estavam ao redor. A Ecovida reúne duas mil famílias nos três estados do Sul e tem autoridade para certificar produção orgânica através de um sistema participativo de certificação.
Na feira orgânica do Centro de Ciências Agrárias, no bairro Itacorubi, em Florianópolis todos os produtos são certificados. Para não restar dúvida, participaram da feira até mesmo os fiscais dos governos federal e estadual com uma vã que exibiu um documentário com clientes desta feira. Pessoas agradecidas, emocionadas e sorridentes; carregando suas sacolas, mães ensinando os filhos a escolher os melhores alimentos; criando laços afetivos e fortalecendo um comércio justo.
Há alguns minutos do meio dia, a mesa de degustação já estava vazia como algumas caixas de orgânicos. As sacolas estavam cheias, os rostos estavam cheios de sorrisos, estavam cheias as memórias das câmeras dos repórteres que perseguiram histórias desde o início do dia.
Ainda havia tempo para música. Um violeiro, antecipando-se a um “Toca Raul”, começou logo com “Caubói fora-da-lei”. Começara um show no fim desta reportagem.