Muitas razões nos impedem de ter filhxs

Por Mayara Bergamo, para Desacato.info.

Nos últimos dois meses alguns vídeos me emocionaram bastante. Eles mostram reações, essencialmente de mulheres, aos resultados positivos de votações pela descriminalização do aborto em seus países.

Primeiro foi na Irlanda, no final de maio. Depois na Argentina, na quinta-feira passada. Essas vitórias me lembraram de um texto que escrevi em abril de 2016, aos 27 anos, após participar de um programa de televisão que falava sobre maternidade. Durante o segundo bloco, a apresentadora veio até mim e perguntou se eu já tinha sentido vontade de ser mãe. Na hora fiquei sem saber como responder, já que a plateia era essencialmente formada por mulheres que eram mães, sendo que algumas delas estavam gestantes. Soltei um grunhido e disse que não, sentindo que a situação poderia ficar indelicada.

Hoje estou com 29 anos e continuo não sendo mãe. Aliás, não teria condições de ser. Mas ainda sou mulher cis, heterossexual, em idade fértil e sexualmente ativa, ou seja, esse assunto faz parte da minha vida e ainda fará por alguns anos, assim como faz parte da vida de uma parcela considerável da população que se identifica ou não com as características que citei, já que no campo das relações, dos gêneros e das identidades existe um amplo espectro passível de gerar uma vida.

Muita coisa mudou após a minha participação no programa. Em abril de 2016 eu tinha conhecimento de uma história de aborto, que aconteceu com uma amiga. Uma história triste e, infelizmente, bastante comum. Tão comum que, só no ano passado, fiquei sabendo de mais três histórias, todas com amigas próximas. Esse ano escutei outro relato, de outra amiga próxima.

Se você nunca soube de uma história de aborto, acredite, é porque suas amigas, irmãs, primas, sobrinhas, afilhadas, mães, avós e tias não se sentem à vontade para falar sobre isso com você. Porque as mulheres que abortam não são monstros, não são psicopatas, não são desalmadas. Elas fazem parte da sua vida, são pessoas que você ama.

Mais que uma pauta feminista e maior que uma questão de saúde pública, discutir aborto no Brasil requer uma profunda reflexão sobre o desemprego, as relações de trabalho, a educação e sobre a cultura, só para começar.

Como é que uma mulher inserida nessa sociedade pode ser obrigada a ter um filhx? No âmbito da conquista de direitos, como mulheres, voltamos umas 10 casas apenas depois do golpe de 2016! Graças a esses senhores, agora podemos até voltar a trabalhar em ambientes insalubres durante a gestação ou lactação – isso se quisermos receber o adicional de insalubridade, que convenhamos, faz diferença no orçamento de uma casa com bebê. E isso quando temos trabalho!

Graças a esse programa de governo, podemos vislumbrar um futuro onde os investimentos em saúde e educação das nossas crianças serão congelados até a idade adulta. Onde as Universidades Federais sofrem um desmonte. Onde as riquezas do país, que deveriam custear nossa real independência são entregues como se estivéssemos em uma grande feira solidária – só que ao contrário. Aqui os pobres oferecem o que não tem e as grandes multinacionais agradecem.

E como se não bastasse isso, ainda vivemos em uma sociedade misógina, repleta de micro e macromachismos, que nos assedia diariamente e nos violenta de maneira simbólica e física. Que mãe não imaginou um ambiente desses para gerar e trazer ao mundo o seu filhx, não é?! Como é que podemos pensar em ter filhxs para obrigá-los a viver essa realidade?

Eu entendo a felicidade e o alívio expressados nos rostos daquelas mulheres irlandesas e argentinas, quando a votação sobre a descriminalização do aborto passou. Imagino quantas ali não passaram por violências, pela situação desesperadora de se ver grávida, sozinha e sem alternativas.

É por mim, é por elas, e é por você que vejo a necessidade de que esses temas sejam cada vez mais discutidos, até que os tabus sejam superados, a discussão seja qualificada e o debate seja tratado com o respeito e a atenção merecidos, para quem sabe, também aprovarmos nossa própria lei num futuro próximo.

 

Mayara Bergamo é fotógrafa e jornalista apaixonada pela cultura popular brasileira e pelo tripé literário formado por Gabriel García Márquez, Eduardo Galeano e Pablo Neruda.

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