Por René Ruschel.
Moradias simples, igrejas, campos de futebol, escolas, açudes, crianças a correr livremente, animais dispersos e muita produção de alimentos orgânicos. Um cenário comum, bucólico, que pode ser retratado em qualquer parte do Brasil rural. Não é diferente nos acampamentos Resistência Camponesa e Dorcelina Folador, criados em 1999, e 1º de Agosto, em 2004, localizados no município de Cascavel, oeste do Paraná. Mas as coincidências param por aí. Desde 15 de dezembro, após 20 anos de trabalho e dedicação, 212 famílias que vivem nas comunidades estão sob risco iminente de despejo.
Uma ordem de reintegração de posse trouxe angústia e medo no período de festas de Natal e Ano-Novo aos integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A área, com cerca de 5,5 mil hectares, faz parte do complexo de fazendas Cajati, na qual vivem cerca de 800 agricultores, entre eles 250 crianças e 80 idosos. “Só queremos viver em paz, ter um pedaço de terra para trabalhar e poder sustentar nossas famílias. Estamos cansados de perder tudo e ter que recomeçar sempre”, desabafa Margarete Fogaça, moradora na comunidade Resistência Camponesa.
Em 2019, primeiro ano da gestão do governador Ratinho Junior, do PSD, foram executados 9 despejos no estado. Eram acampamentos com 10, 15 ou 20 anos de uso do solo. Mais de 500 famílias acabaram forçadas a deixar tudo para trás. As tentativas de negociações deram em nada. No caso de Cajati, o processo administrativo para a compra da terra encontra-se em Brasília, inclusive com os valores da desapropriação acordado com o proprietário. O Incra realizou o trabalho de demarcação na área. “Falta apenas o estado cumprir sua obrigação e pagar”, diz Adair Gonçalves, um dos líderes do movimento na região.
A resistência começou na manhã de 28 de dezembro. Às margens da BR277, rodovia que liga a cidade a Foz do Iguaçu, um dos mais importantes polos turísticos do País, um grupo de acampados instalou a vigília “Resistência Camponesa: Terra, Vida e Dignidade”. A rotina dos trabalhadores foi decisiva para definir seu horário de funcionamento. Por ser uma região de temperaturas altas durante o verão, as primeiras horas da manhã e o fim da tarde são ideais para o trabalho na lavoura. Assim, a mobilização diária concentra-se entre 10 da manhã e 3 da tarde.
Segundo Roberto Baggio, da coordenação estadual e nacional do MST, o que acontece nos estados é reflexo da política do governo Bolsonaro em relação à reforma agrária. “Este é um dos momentos mais difíceis vividos nos últimos 30 anos. A reforma agrária está institucionalmente paralisada e politicamente bloqueada.” O projeto agrícola do governo federal, acrescenta, é voltado para o estímulo ao agronegócio, sem qualquer preocupação social ou econômica com os pequenos produtores.
Os governos estaduais, por sua vez, têm uma enorme importância, pois cabe aos governadores adotar medidas complementares capazes de viabilizar o processo de assentamento. Os benefícios são evidentes. Além do acesso à terra e a geração de empregos e renda, os assentamentos se transformam em importantes parceiros econômicos dos pequenos municípios, onde tradicionalmente estão instalados. “Não bastasse os produtos saudáveis e sem agrotóxicos oferecidos à população, os municípios têm sua arrecadação fiscal elevada, uma vez que o comércio local é ativado.” No Paraná, algumas comunidades de assentamentos ou mesmo acampamentos têm população superior a 10% dos menores municípios do estado.
Baggio insiste na necessidade de o MST se mostrar à sociedade, a fim de evitar que medidas positivas, conquistadas e adotadas ao longo de décadas, sejam atiradas na lata do lixo. “Expulsar os trabalhadores dos acampamentos é uma verdadeira tragédia. São famílias que estão ali há anos, produzindo alimentos, com direito a moradia e educação para os filhos. O governo joga esses trabalhadores na marginalidade.”
Em menos de 30 dias, os resultados começaram a aparecer. Luiz Carlos Gabas, reverendo da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, esteve no local e enviou uma mensagem direta ao governador: “Apelamos para que ele preste atenção na vida desses nossos irmão e irmãs, e dê às famílias acampadas o direito de acesso à terra. A reforma agrária é necessária e deve acontecer. Que o governo não dê privilégios somente aos ricos, mas que tenha um olhar para os pobres que moram neste estado”.
A mobilização dá-se na mesma cidade onde há 36 anos, em janeiro de 1984, cerca de 150 líderes oriundos de 16 estados se reuniram e fundaram o MST, dispostos a lutar pelo acesso à terra, pela democracia e por um mundo menos desigual. “Nestes anos”, lembra Baggio, “crescemos e ampliamos nossas forças. Tivemos conquistas, vitórias e também derrotas. Essa vigília, para nós, é um ato político de resistência contínua.” Não deixa de ser também um triste símbolo do galopante retrocesso social do Brasil.