MP de Temer mercantiliza o direito à moradia

Por Marcelo Luiz Zapelini, para Desacato.info.

Todos os imóveis irregulares poderão ser regularizados, inclusive moradias construídas sobre a laje de outra. Bonito! Mas a promessa da Medida Provisória (MP) 759/2016 esconde a interesses econômicos e desinteresse social. É o que ficou evidente na audiência pública realizada pela Câmara de Vereadores de Florianópolis, ontem, 27.

A MP “dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal, institui mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União, e dá outras providências”. Para os especialistas, a matéria é tão complexa que não deveria estar em um único texto, pois pode gerar confusão.

“Quando você trata de propriedade privada em uma lei imbricada, difícil e tecnicista como essa, você não consegue entender as maldades que estão no meio e como que ela pode comprometer os direitos”, avaliou Rosane de Almeida Tierno, advogada especialista em regularização fundiária.

Ela apontou que a MP trata os imóveis como simples mercadoria. “A propriedade tem um valor econômico sim, mas acima de tudo ela tem um valor como direito subjetivo, especialmente para a população de baixa renda”. O objetivo do Governo Temer é gerar crédito imobiliário e criar mercadorias e não garantir direitos.

A ex-gerente de projetos do Ministério das Cidades indicou ainda que a regularização fundiária, como está pensada, atende a ao pensamento neoliberal que vê a regularização fundiária como um mecanismo de criar uma mercadoria titulada passível de ser oferecida em garantia de crédito. É oposto a outro pensamento acadêmico que defende “o lote urbanizado como um direito a moradia, um direito subjetivo previsto na constituição, que não pode ser negado pelo poder público”. Rosane ainda alertou que a mudança brusca na legislação levará a uma paralisação de processos fundiários por vários anos até que a nova lei seja acomodada.

No mesmo sentido, o advogado Henrique Botelho Frota, secretário executivo do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), reforçou essa interpretação. “Num primeiro momento há um discurso de que haverá titularização e isso atende a população de baixa renda, num segundo momento dessa titularização em massa não se garante a permanência dessas pessoas de maneira organizada e com qualidade de vida”.

Uma das provas de que não há interesse social nas regularizações é que a MP 759/2016 revogou o conceito expresso na Lei 11.977/2009: “A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”.

Para Frota, “trabalhar a titularização sem trabalhar outros aspectos torna essas populações mais vulneráveis às pressões do mercado imobiliário”. Embora, não fosse considerada perfeita, a lei de 2009 preenchera um vazio legal e estava em processo de construção e amadurecimento, em que especialistas e organizações do setor discutiam avanços necessários no sentido da habitabilidade, da infraestrutura, dos serviços, do espaço público, da acessibilidade e da segurança da posse.

Não é uma defesa da irregularidade

“Não é que a irregularidade seja algo bom, não estamos fazendo um discurso aqui de que a irregularidade seja boa, mas a regularidade sem proteção também não assegura a permanência das famílias”, explicou o advogado.

Em 74 artigos, a medida provisória abre espaço para procedimentos que possibilitam a transferência de propriedade pública em áreas da Amazônia Legal e nas áreas de marinha, regularização sem infraestrutura prévia, inclui conceito de “núcleo urbano”, estranho as definições internacionais, isenta o Imposto de Transmissão de Bens Imóveis Inter-Vivos, que é de jurisdição municipal. A MP ainda abre espaço para a regularização de empreendimentos de alto padrão sem especificar quais as medidas mitigadoras e a contrapartida a ser oferecida à sociedade. O diploma legal cria o “direito a laje” (quando uma casa independente é construída sobre a outra), mas não explica como será garantido.

O deputado federal Pedro Uczai (PT/SC) ressaltou que áreas públicas no campo e na cidade serão doadas para o setor privado, tanto as da Amazônia Legal, como as de área de marinha e as dos distritos industriais municipais. A medida também mercantiliza as áreas de assentamento. Hoje essas áreas são propriedade federal. Com o título individual da propriedade “eles (do governo) vão desmontar os movimentos sociais do campo, porque na medida em que o agricultor se aperta em um financiamento ele vende a terra”. Para ele, o avanço da concentração de terra será inevitável. Além disso, o governo cria critérios para a destinação dos lotes, que na prática, excluem os trabalhadores acampados, municipaliza a seleção dos assentados e impede de que áreas ocupadas sejam utilizadas para o Programa Federal Reforma Agrária.

Uczai alertou que não será possível derrotar essa MP com a atual correlação de forças no parlamento. “Só temos uma luta que nós temos lá que podemos derrotar parcialmente, se não toda: é a reforma da Previdência. Nem a reforma trabalhista conseguiremos evitar”. Para que “os deputados sintam, ao menos, o bafo no cangote”, ele sugeriu que todas as câmaras de vereadores enviem ao congresso moções de repúdio.

Citando o livro Matematicamente Incorreto, de sua autoria, deixou uma mensagem de alento: “na política a minoria não está fadada a perder sempre e nem a maioria ganhar sempre, depende da correlação de forças, da conjuntura e do nível de pressão social, em que você pode reverter determinadas votações”.

O vereador Lino Peres (PT), que propôs esta audiência, avisou que haverá um novo debate “talvez no mês que vem” com foco na questão agrária, em que os trabalhadores rurais serão convidados. Ele levará aos colegas vereadores o encaminhamento dos participantes da audiência pública: que a Câmara Municipal de Vereadores envie para os congressistas uma moção contrária a MP 759/2016.

Enquanto isso, a medida segue em vigor com poder de lei, até pelo menos inicio de junho, quando deverá ser votada. Se aprovada como prevê Uczai, os especuladores internacionais, os grileiros e a indústria imobiliária terão muito que comemorar. A nova legislação, explicou Frota, abre a “possibilidade dos estrangeiros acumularem cada vez mais terras no país, de outro lado também há uma tendência de alienação do patrimônio da união que agora se fortalece e há também uma pressão do mercado imobiliário, com as grandes construtoras e incorporadoras que enxergam nessas ocupações irregulares uma dificuldade de avanço nas fronteiras do mercado. Na medida em que você titulariza, coloca as propriedades no mercado formal e permite que elas acessem esse patrimônio e possam comprar dos moradores”.

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