Movimentos populares arrecadam e doam 12 toneladas de alimentos a indígenas e quilombolas

Parte da equipe do Fórum que ajudou na distribuição dos kits de alimentos no quilombo Adelaide Maria de Trindade Batista
Foto: Geani Paula de Souza.

Por Isadora Stentzler, para Desacato. info.

A kaingang Maria de Oliveira, de 63 anos, foi a primeira da fila da direita a pegar um dos 200 kits de alimentos doados pelo Fórum Regional das Organizações e Movimentos Populares do Campo e da Cidade na tarde da quinta-feira, dia 21, em uma das comunidades da Reserva Indígena Mangueirinha, às margens da BR 373, quase divisa entre os municípios paranaenses de Chopinzinho e Coronel Vivida. “Isso vai ajudar demais! Ficamos uns dias sem se preocupar”, disse com os olhos sorrindo, mal conseguindo carregar as sacolas.

Maria de Oliveira, de 63 anos, vive da aposentadoria e recebeu um dos kits de alimento: “Isso vai ajudar demais”
Foto: Isadora Stentzler.

Os alimentos, colocados lado a lado em um dos cantos da quadra de esportes da comunidade, foram arrecadados por entidades de pelo menos 18 municípios do Sudoeste do Paraná e divididos em 400 kits. Metade deles foi até a comunidade onde Maria mora e a outra, até o município de Palmas, onde está a comunidade quilombola Adelaide Maria de Trindade Batista.

Equipe do Fórum organiza alimentos no quilombo Adelaide Maria de Trindade Batista
Foto: Geani Paula de Souza.

A ação, pensada pelo Fórum, arrecadou alimentos da agricultura familiar e de movimentos da cidade e do campo. Foram 22 entidades envolvidas, sendo 12 apenas do Fórum. Parte dos produtos veio do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), sindicatos e também foi adquirido de agricultores familiares que estavam com os alimentos parados devido a barreiras impostas pelo comércio diante do novo coronavírus.

Kaingangs

Lidiane Eufrásio tem 27 anos e é uma agente de saúde kaingang
Foto: Isadora Stentzler.

Com um pouco de lentidão e com as bolsas de alimentos nas mãos, Maria foi até uma das cercas do ginásio. O espaço está bem perto da escola da comunidade, agora fechada devido à pandemia. As aulas são em casa e os professores levam os materiais para crianças, quando elas não podem buscar. Alternativas que seguem às adotadas em outros municípios brasileiros. Horas antes naquela quinta-feira, quando a merenda escolar foi distribuída aos alunos, a tarefa da aula também foi entregue junto.

A escola é acessada por uma estrada de terra, que se divide em bifurcações que levam às casas das 614 famílias que moram ali. As etnias da região são Kaingang e Guarani, mas o cacique, João Santos Luiz Carneiro, de 62 anos, disse que também tem uma família Xetá (o pai e os filhos, que se uniram à comunidade no Paraná).

Indígena leva um dos kits
Foto: Isadora Stentzler.

Da cerca, Maria contempla as outras pessoas que também vão buscar os alimentos. Ela então toma uma de suas netas no colo e, com as sacolas no chão, diz que tem a garantia de que não passará fome – embora tenha dito que esse ainda não seja seu maior medo. “Não está nada fácil mesmo”, diz, referindo-se à vida na pandemia, “porque não podemos sair mais. Tem que correr atrás das coisas. Então não tá fácil pra nós. Porque antes a gente saia, ficava na cidade, vendendo, e agora não tá fácil pra ficar lá. Eles não deixam. Esses dias fomos lá pra ver se dava pra ficar ao menos de máscara, mas não dá”.

Foram 200 kits de alimentos distribuídos apenas aos indígenas
Foto: Isadora Stentzler.

Na comunidade ela vive com uma filha e recebe uma renda de aposentadoria, mas diz que ainda ajuda os outros quatro filhos que moram ali. As noras conseguiram o auxílio emergencial de R$ 600 disponibilizado pelo Governo Federal, e ela ainda mantem troca de alimentos ou venda de mandioca que planta entre os próprios indígenas. “Dentro da comunidade a gente se ajuda”, pondera.

Luta por terra em meio à pandemia

O cacique não soube dizer quantos indígenas da região tiveram acesso ao benefício do governo, mas entende as angústias da comunidade. “Nós estamos precisando de doações. Porque os que lidavam com artesanato, não tá fácil pra sair vender. E com o Governo Federal tirando quase todos os nossos direitos, estamos se apegando nos governos estaduais e municipais”.

Como liderança, João teme pelos indígenas que vivem ali. A terra separada para eles é de 16,8 mil hectares, mas fica às margens da estrada. Agora, pela pandemia, os limites pararam de ser debatidos, mas João denuncia que já haviam fazendeiros se apropriando do espaço. “Precisamos de uma nova demarcação. Reaver os marcos. Porque ela [terra] é nossa. Ela não tem problema com grileiro, com posseiro. Só que estão entrando devagarzinho no território da aldeia. O que nós estamos precisando é reaver os marcos de novo. Estamos tendo muito cuidado com os agricultores e fazendeiros que estão ao redor de nós. Porque eles vão querer espremer nós e tirar um pedaço de nós. Depois que passar essa pandemia nós temos uma conversa com o Ibama para eles analisarem onde os agricultores não índio invadiram e derrubaram árvores”.

Além deles, vendedores ambulantes entram facilmente no território, e agora são expulsos para evitar uma possível contaminação.

Coronavírus

As denúncias do cacique expõem a fragilidade dos povos originários. Apesar disso, ele não se queixa dos cuidados com a saúde que a região recebe.

Lidiane Eufrásio tem 27 anos e é uma agente de saúde kaingang. Faz pouco mais de um ano que começou a realizar o serviço na comunidade e foi uma das últimas a pegar um dos kits de alimento. Além deles, carregava uma bolsa de plástico menor, com várias máscaras de proteção facial, e uma prancheta nas mãos.

Vez ou outra era chamada por alguém da comunidade que precisava de uma máscara. E logo que entregava, anotava na lista que tinha nos braços. “Nós estamos enfrentando aqui com bastante responsabilidade, porque é muito cuidado com o povo indígena. Estamos doando mascaras, álcool em gel. Estamos se prevenindo. Estamos aconselhando pra não aglomerar muito. As crianças ficar em casa. E assim nós vamos tentando levar”.

Segundo ela, o posto de saúde da comunidade conta com dentista, auxiliar, duas agentes de saúde e uma técnica em enfermagem. “Tem tudo. Mas ainda é muito precário”.

O que a comunidade sente é que o coronavírus desnudou as dificuldades que já existiam. Deu voz ao preconceito e isolou ainda mais suas comunidades. O artesanato, que se transforma em renda para estes povos, definha. É feito para ser guardado. Nem testes rápidos são distribuídos no postinho. O que eles sabem é que precisam estar juntos para não perderem o território e direitos ao mesmo tempo em que precisam estar separados para não perderem a vida.

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