Por Marcelo Pomar e Flora Lorena Branco Muller.
Na última sexta-feira 14 de junho, o dia seguinte a uma das mais brutais repressões a que observamos por uma Polícia contra seu próprio povo, nos arredores da avenida Paulista, assistimos a um comentarista da TV Cultura, o Carlos Eduardo Novaes, construir uma reflexão muito lúcida e que mexeu particularmente com os autores deste artigo. Ele dizia, entre outras coisas, que não se podia cobrar eventuais erros ou excessos desses jovens manifestantes, porque, ao contrário da geração dele, que quando jovem lutou contra a ditadura militar e tinha ao seu lado os mais experientes homens e mulheres de quarenta, cinquenta ou sessenta anos, os jovens de hoje estão sozinhos, porque a geração de esquerda mais velha está quase integralmente preocupada em defender projetos eleitorais, garantir cargos no estado e fazer as indispensáveis flexões táticas no discurso, isolando essa juventude.
O que ocorre no Brasil é um levante. Muito maior que o Movimento Passe Livre ou qualquer organização que dentro do levante se encontre. Um levante que teve no aumento das tarifas do transporte público seu estopim, mas que na realidade é órfão do abandono das lutas sociais por aqueles partidos que as hegemonizaram nos anos 80 e 90, sobretudo o PT e que agora ajudam a reprimi-la.
E é essa postura tacanha, reacionária, expressa nas odiosas frases desditas do José Eduardo Cardozo, Ministro da Justiça (!?), que abriu as brechas, deu a senha necessária para um reposicionamento da direita conservadora do Brasil, que ao invés de atacar o movimento, como fizeram na primeira semana, passam agora a disputá-lo, tentando incluir nele pautas da agenda conservadora nacional e enfraquecer a imagem de Dilma Rousseff para 2014, como provam a Veja da semana, os comentários de Arnaldo Jabor e os asseclas públicos da sua linha ideológica.
Mas da direita se sabe o que esperar, é fácil e inútil culpá-la. A culpa é do horizonte tacanho da nossa esquerda que institucionalizou-se. Que colocou no topo da lista de tarefas um desenvolvimento com distribuição de renda, mas ignorou amplamente a política para as cidades, a despeito de 85% dos brasileiros viverem nelas. Que não avançou um palmo em relação à democratização dos meios de comunicação e segue sendo a principal financiadora dos monopólios. Que enfrenta timidamente os militares responsáveis pela barbárie da tortura e dos mortos e desaparecidos políticos, não fechando um necessário ciclo de terror que se expressa na ação PM paulista, filha pródiga dessa ditadura militar.
Apesar do Estatuto das Cidades, um dos parcos avanços nesse tema, a política de mobilidade urbana inexiste, o preço do transporte público segue sendo escorchante (terceiro principal custo da família brasileira), e sua exploração relegada à iniciativa privada para realização de lucros privados, quando sabemos que o transporte coletivo é um serviço público essencial, consagrado como tal na Constituição Federal de 1988 e fator estratégico para o funcionamento regular das cidades, de sua economia, e sobretudo da garantia do acesso aos diversos equipamentos públicos e conquistas da humanidade que se concentram nelas. O que colhem agora é também o fruto de uma política de incentivo à indústria do automóvel e de endividamento da classe trabalhadora, política corresponsável pelos enormes engarrafamentos diários e por uma verdadeira guerra civil no trânsito brasileiro. Mais de 50 mil pessoas morrem por ano vítimas do trânsito. No Vietnam, morreram 54 mil combatentes ao longo do conflito.
Uma hora a fatura seria cobrada. E como há um descolamento evidente da base social – que não para e caminha com suas próprias pautas, confusas ou não –, da direção política que hegemonizou a luta da classe trabalhadora, essa mesma direção política olha assustada para as manifestações, pendulando entre uma posição reacionária alinhada ao discurso da ordem e servindo de marionete à direita, para uma posição de diálogo, ainda que no campo técnico, sem disposição de reconhecer os erros, baixar tarifas, e apresentar propostas ousadas e inovadoras, que visem a democratização do acesso aos direitos e conquistas que se concentram nas cidades.
Uma demonstração do cenário dessa mudança é a posição do governo da Luiza Erundina, do PT de 1988, para a posição do Fernando Haddad, do PT de 2013. É inspirado num projeto do próprio PT, de 1988, de Tarifa Zero nos transportes coletivos, que o Movimento Passe Livre se fia teoricamente para levar a cabo a luta pelo direito à cidade. Embora lá também o PT não gozasse internamente de todo apoio necessário para levar a cabo a consagração dessa tese (um dos contrários a essa posição era o Lula). Mas no caso de 88, Erundina prefeita era uma das grandes entusiastas e lideranças de proposta. Fazia Política na concepção ampla da palavra. Não se apegou aos obstáculos e minudências técnicas, nem tinha no horizonte a preocupação com a próxima eleição, e sim com a prefeitura em si como instrumento de intervenção para modificações estruturais que fazem avançar a democracia real na cidade.
Em São Paulo, Fernando Haddad e a prefeitura paulista parecem só ter um caminho possível para reverter o desgaste acumulado e se separar de vez da péssima postura inicial, quando fizeram eco ao discurso de Geraldo Alckmin: anunciar a revogação imediata do aumento da tarifa, sentar com o movimento e estabelecer uma agenda de curto, médio e longo prazo que vise a ampla democratização do acesso ao transporte, na lógica do controle público e do interesse social. Dizer ser impossível fazê-lo porque custa 600 mil reais é não fazer “matemática política”. O custo de suas posições são muito maiores do que esse valor e não haverá marqueteiro político milionário que consiga reverter essa situação.
No Brasil, chegamos, com isso, num momento ímpar de reflexão e de decisão. Essa semana que abre no dia 17 de junho de 2013, temos 74 manifestações marcadas no país e no exterior. É óbvio que a repressão militar não dará conta de resolver isso na borracha. As pautas misturam diversas questões ligadas sobretudo à carestia, mas também a uma agenda vazia de conteúdo, como o “combate à corrupção”. Ninguém em sã consciência é a favor da corrupção. Mas ela é lamentavelmente quase um pressuposto do sistema político vigente. Ela é pauta eleitoral de 2014. Cabe às forças políticas consequentes, que se negam ao retrocesso e a lógica do quanto pior melhor, mas que se desapontam ao ver a esquerda que a classe trabalhadora levou ao poder reproduzindo acriticamente o que de pior a direita sempre fez, levar às ruas do Brasil a agenda avançada que o momento reivindica: Por um Transporte Público, Gratuito e de Qualidade; Contra o Estatuto do Nascituro e Redução da maioridade Penal; Pelo direito à Memória, Verdade e Justiça contra os crimes da Ditadura Militar; pela Reforma Agrária e Urbana; pela igualdade ampla e irrestrita entre homens e mulheres; pela livre orientação sexual; e pelos Direitos Humanos contra a barbárie da repressão na cidade, no campo, e contra os indígenas. Com um recorte político e de classe bem definido, contra a despolitização que permite a apropriação ainda que em partes desse movimento pela direita reacionária do Brasil. É hora de lutar, entrar na disputa e não de se esconder.
Fonte: TarifaZero.org
Foto: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22210