Crônicas do Irani. 1a parte.
Por Celso Martins.
Ao longo do ano permanecem discretas, com suas folhas alongadas e pontudas, mas quando chega a Primavera e se aproxima o dia de Finados, as flores brotam com uma singela exuberância, enfeitando o Cemitério do Contestado, no município do Irani, região do meio-oeste catarinense. Ao lado existe um museu e, mais adiante, o local do combate de 22 de outubro de 1912, estabelecido pela historiografia como o marco inicial da Guerra do Contestado.
O lugar é conhecido como Banhado Grande do Irani, Faxinal dos Fabrício, símbolo da presença das famílias vindas da região de Passo Fundo-RS, entre fins do século 19 e início do século 20, área indicada a eles por um “monge” – entre os rios do Peixe, Iguaçu e Uruguai. Quase todos estiveram envolvidos nas lutas ocorridas no Sul do Brasil entre os anos de 1893 e 1895, episódio conhecido como Revolução Federalista.
Eram quase todos, maragatos ou federalistas, antigos liberais no Império, muitos dos quais pegaram em armas contra o domínio de Júlio de Castilhos. Derrotados e perseguidos de alguma forma no pós-conflito, buscaram refúgio nos campos do Irani, entre Concórdia-SC e Palmas-PR, dedicando-se ao plantio de milho associado à criação de porcos, à pecuária, à extração da erva-mate e a coleta do nó-de-pinho. Adotavam a antiga religiosidade católica simbolizada pelo culto a São João e ao Divino Espírito Santo.
A prosperidade e a paz iniciais foram quebradas por um fenômeno chamado capitalismo, momento em que a terra que tinha valor de uso passa a ter valor de mercado. As mesmas terras que antes pertenciam à União (Império), com a República passam às mãos dos estados e rapidamente repassadas a empresas interessadas na colonização e na exploração das riquezas naturais, sobretudo a madeira, os pinheirais.
Os antigos habitantes da região, brasileiros outrora estimulados pela política oficial do uti possidetis, ou a posse como garantia de ocupação e conquista de territórios reivindicados pela Argentina, tiveram seu modo de vida desestruturado, as relações sociais como as de compadrio abaladas ou mesmo rompidas em muitos casos. O caboclo que garantiu aquelas terras para a Nação, fonte de fartura alimentar, vestuário e moradia, se vê ameaçado em seu presente e futuro.
Não são apenas os ecos da modernidade que chegam aos sertões. As bases desta mesma modernidade, ou do capitalismo nascente, se transferem para estas áreas anteriormente “esquecidas” pelo poder público e pela própria Nação. É o fermento da revolta. João Maria anunciara o Apocalipse próximo em suas peregrinações, fizera profecias do que estaria por vir – a ferrovia, a extração mecânica de uma quantidade descomunal de pinheiros e outras árvores nobres, o cercamento e a demarcação das terras e sua venda a famílias vindas do Rio Grande do Sul.
Momento em que “tudo que é sólido se desmancha no ar”, como dizia Marx, ou seja, quando nada do que foi será, o prolongado instante de transformação da paisagem, dos hábitos e costumes, das relações familiares, religiosas, sociais e econômicas.
Com os homens e mulheres do Irani as coisas não foram diferentes. Fazendeiros de Palmas, então a região mais importante do interior do Paraná, escrituram as terras dos campos de Palmas até o rio Uruguai. Entre estes “posseiros” estão os Fabrício das Neves, sobretudo José, parceiro de José Maria de Castro Agostinho. Ao contrário do que a historiografia e as más-línguas tentam impor, José Maria não era nenhum desequilibrado, não existem provas de ser desertor, nem de defloramento em Palmas.
“Invasão”
O que temos são relatos como os de Antônio Martins Fabrício das Neves, confirmando a presença de José Maria entre os moradores do Irani. Também existem registros de sua presença em Palmas e outras cidades do Paraná. Outros relatos situam o monge como amigo do coronel Miguel Fragoso, na região de Engenho Velho, atual Concórdia. Sua presença em Campos Novos se dá apenas em fins de 1911, depois vai a Taquaruçu (Curitibanos), onde fica até setembro, quando volta ao Irani.
José Fabrício estava com ele e oferece hospedagem ao grupo de 40 pessoas, aproximadamente. Em seguida todos se estabelecem na casa de Thomaz Fabrício das Neves (irmão de José Fabrício), seguindo por último para a residência de um tio de ambos, Miguel Fabrício das Neves, onde se estabelece o reduto.
A chegada de José Maria no Irani, disposto a resistir às ameaças de expulsão das famílias ali estabelecidas, foi a senha para que os fazendeiros de Palmas entupissem os jornais de Curitiba alarmando a população: tratava-se de uma invasão de catarinenses ao território paranaense visando forçar o cumprimento de sentenças judiciais entregando a região ao estado vizinho, Santa Catarina. Criou-se um estado de comoção. Estudos realizados no Paraná indicam a intensidade da campanha desenvolvida a partir de Palmas.
A partida da força policial do Paraná para a região do Irani, sob o comando do coronel João Gualberto, oficial ilustre e de largo preparo militar, representou a oportunidade para os fazendeiros de Palmas se verem livres dos “posseiros” dos campos do Irani. A antiga Questão de Limites foi usada com habilidade para a consecução de objetivos escusos. O coronelismo nascente e dominante na Primeira República dava as cartas, como deu as cartas em todo o episódio do Contestado, envolvendo os militares na carnificina e, mais recentemente, culpando a ferrovia por tudo que aconteceu na região.
As flores que anualmente inundam de branco o Cemitério do Contestado no Irani, lançam os primeiros brotos por volta do dia 22 de outubro, como a homenagear os combatentes mortos há 99 anos. As pontas das folhas que terminam em espinhos abdicam do aspecto ameaçador exatamente nesse período em que lembra os mortos. A vida celebrando aquele que deu a vida na defesa de seu chão. (Por Celso Martins, outubro de 2011)
Fonte
MARTINS, Celso. O mato do tigre e o campo do gato. José Fabrício das Neves e o Combate do Irani. Florianópolis: Insular, 2007.