Por José Ribamar Bessa Freire.
Nem um mosquito ensebado conseguiria se infiltrar nas matérias sobre os índios guarani publicadas nesta semana no Diário Catarinense (DC). A expressão é usada, pelo menos no Amazonas, para designar algo fechado, impenetrável, difícil de entrar, seja a bola no gol, uma ideia na cabeça ou um “mosquito ensebado” numa fortaleza inexpugnável. É o caso do jornal do grupo RBS de Comunicação, que está absolutamente fechado a qualquer informação fornecida pelos índios. Durante cinco dias, publicou 20 páginas sobre os guarani e cometeu a façanha de não ouvir nenhum dos envolvidos. Sequer uma linha, uma palavra, uma vírgula guarani.
Editado em Florianópolis há mais de 28 anos, o Diário já tem idade para criar vergonha na página. Não criou. As matérias assinadas por Joice Barcelo e Ivan Rodrigues, sob o título “Terra Contestada“, publicadas entre os dias 07 a 11 de agosto, ocuparam caderno com 20 páginas para desqualificar os índios guarani, atacar a demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, localizada no município de Palhoça (SC), e agredir os antropólogos que não rezam pela cartilha do agronegócio.
Quem achava que não existia discurso mais nojento sobre os índios do que o da revista Veja se equivocou. O Diário Catarinense caprichou. Requentou as fantasias da Veja e desinformou seu leitor, jurando que os guarani que vivem no Brasil são estrangeiros, vieram do Paraguai, são falsos índios, manipulados por organizações não governamentais e por antropólogos inescrupulosos, que criaram uma “fábrica de aldeias”.
O Diário Catarinense jogou na lata do lixo documentos históricos, mapas, livros e a memória oral para afirmar que os guarani não habitam tradicionalmente a TI Morro dos Cavalos e agora estão atrapalhando a duplicação da BR-101. O jornal faz tais afirmações estapafúrdias, buscando apoiar-se em autoridades como o Tribunal de Contas da União (TCU), que questionou a ocupação tradicional da área, além de um antropólogo de araque que desconhece os guarani, ambos possuidores da mesma legitimidade de um ciclista para pilotar um avião.
O outro lado
A parcialidade do jornal fica patente quando despreza estudos, laudos e pareceres técnicos realizados por quem tem competência e legitimidade para isso, e se esconde detrás de autoridades de duvidoso e interesseiro saber.
Aqueles que defendem os direitos dos índios são atacados pelo jornal. Foi o que aconteceu com o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e a antropóloga Maria Inês Ladeira, cujo “crime” foi ter coordenado o grupo técnico responsável pelos estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena Morro dos Cavalos. Para desqualificar a antropóloga, reconhecida pesquisadora da cultura guarani, autora de livros e artigos usados em muitas universidades, o Diário usa suposto laudo de um tal Edward Luz, que nunca publicou uma palavra sobre esses índios.
Uma nota oficial aprovada no XV Encontro Estadual de Historia de Santa Catarina, realizado entre 11 e 14 de agosto, manifestou sua indignação e tocou na ferida quando ressaltou que “a reportagem veiculou a entrevista de um único Guarani, que há algum tempo já não reside mais na Comunidade e cujos argumentos e posição não são sustentados por qualquer outro guarani. Os sujeitos envolvidos e atacados pela reportagem, sequer foram ouvidos, lideranças (caciques, professores, anciões), famílias Guarani que residem na comunidade Itaty do Morro dos Cavalos” – diz a nota.
O Conselho Indigenista Missionário-Regional Sul também tornou pública uma nota em que manifesta “repúdio às matérias publicadas pelo jornal Diário Catarinense, que externa sua visão desqualificada e anti-indígena contra os Guarani, demonstrando uma profunda falta de conhecimento a respeito da realidade indígena”. Informa que os Guarani já se manifestaram várias vezes, desde 2001, de que não se opõem à construção dos túneis da BR-101, contradizendo a reportagem.
Com relação às fontes do jornal, o CIMI estranha “como um jornal pode dar destaque para um antropólogo, no caso Edward Luz, que foi expulso da ABA por falta de ética profissional, não conhece os Guarani e é contratado pelo agronegócio para produzir contra laudos. Pelo nível de agressividade e intolerância nos perguntamos: Que interesse tem por trás de uma matéria? Quem pagou por essas matérias? Quem pagou pela arte do site do jornal?”.
Carta para Dilma
Uma manifestação foi convocada para quarta-feira, às 10 horas, no centro de Florianópolis, enquanto os guarani encaminharam uma carta para a presidenta Dilma cobrando a homologação da Terra Indígena Morro dos Cavalos.
Eis a íntegra do documento:
Excelentíssima Presidenta da República, Dilma Rousseff
Nós povos indígenas guarani, em nome de nossos irmãos, pais, filhos e toda ancestralidade que veem por nós, solicitamos a Vossa Excelência a imediata homologação de nossa Terra indígena do Morro dos Cavalos, município de Palhoça, em Santa Catarina. Esperamos já há 20 anos enfrentando todas as dificuldades e etapas para chegarmos até aqui onde estamos.
Durante os últimos anos, pela demora do processo demarcatório, algumas pessoas que moram por perto em nome de interesses particulares, tem organizado um forte movimento político para impedir que a gente seja reconhecido, juntamente com algum meio de comunicação, dizendo que nunca existiram indígenas aqui e inventam muitas outra mentiras sobre nossa originalidade. Somos caluniados, difamados, ameaçados e sofremos muitas pressões psicológicas da sociedade Palhocense. Também temos sido alvos de racismo preconceito e discriminação por parte do Estado.
Estamos esperando com muita paciência pelo dia que em poderemos viver nossas vidas com dignidade. Aprendemos a ler e escrever na língua da Senhora para que chegasse logo este momento.
Portanto, estamos diante da Sra neste tempo, na esperança da homologação imediata de nossa terra, de reparar um grande erro histórico. Homologue nossa terra, nosso futuro, nossa história. Seremos eternamente gratos, por dividirmos este tempo, este lugar com a Sra. presidenta da república: Dilma Roussef.
Atenciosamente
Comunidade indígena guarani da Terra Indígena Morro dos Cavalos.
A questão é que o discurso dos índios, dos antropólogos, dos historiadores e dos indigenistas, cujas pesquisas trazem dados novos sobre a realidade indígena, contradizem a narrativa sobre o Brasil, que já foi cristalizada e naturalizada. Nem um mosquito ensebado consegue nela penetrar como demonstra o Diário Catarinense.
Os guarani com quem convivo são elegantes, discretos, refinados, educados, incapazes de uma grosseria. No entanto, eles tem alguns amigos, como eu, que não hesitam em usar uma palavra feia para designar uma coisa feia. Por isso, peço a eles que fechem os ouvidos para o que vou aqui escrever: a matéria do Diário Catarinense, por praticar o anti-jornalismo, por ser preconceituosa e desinformativa, foi escrota, muito escrota. Não tenho outra palavra para classificá-la.
Fonte: http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=1101