Mortes, prisões e espionagem: jornalista palestina escancara ‘apartheid’ de Israel

Mais de 140 jornalistas assassinados em sete meses de guerra em Gaza transformaram o local no terreno mais letal para a categoria em toda a história moderna. O número supera em mais que o dobro a contagem de corpos durante a Segunda Guerra Mundial, com 69 baixas, e os conflitos no Vietnã e sudeste asiático, com 63. Desde a escalada da guerra na região, após o dia 7 de outubro, já são pelo menos 35 mil mortos, com uma particularidade: a fatia significativa de civis, especialmente mulheres e crianças, abatidos pelas forças israelenses.

Jornalista Hind Shraydeh

Por Felipe Bianchi | Barão de Itararé, ComunicaSul e Fórum de Comunicação para a Integração de Nossa América (FCINA).

O dado é chocante, mas as atrocidades cometidas pelo Estado de Israel não se restringem à cova coletiva que avança sobre Gaza. A liberdade de imprensa e de expressão também são alvos preferenciais da ocupação colonial e da incursão genocida de Benjamin Netanyahu na Palestina.

Segundo a jornalista Hind Shraydeh, especializada na cobertura de temas como presos políticos e direitos humanos, há uma lista infindável de crimes contra jornalistas e comunicadores, que vão de detenções arbitrárias à espionagem: “Ser jornalista na Palestina é caminhar sobre um campo minado”, diz a repórter.

Shraydeh concedeu entrevista ao Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, ao coletivo ComunicaSul e ao Fórum de Comunicação para a Integração de Nossa América (FCINA) no domingo, 12 de maio, em Joanesburgo. Na ocasião, a cidade sul-africana sediava a Conferência Global Antiapartheid pela Palestina.

“Jornalistas de Gaza têm sido alvo de uma matança sistemática. Nós temos agora mais de 140 mártires, entre homens e mulheres”, explica. “Israel aponta sua mira sobre os jornalistas não apenas quando estão em serviço, mas também quando estão em casa com seus familiares. Uma família inteira é assassinada e simplesmente some do mapa por conta do ofício jornalístico e de reportar o que ocorre na região. Outros são punidos com amputações, perdendo as pernas ou as mãos. Isso viola qualquer tipo de convenção internacional”, protesta.

Segundo ela, uma das estratégias do sistema de ocupação é a censura da livre circulação de informação. Como isso acontece? Inviabilizando a prática do jornalismo. “Israel dividiu os palestinos em cantões isolados dentro do próprio território, seguindo o conceito de dividir e conquistar”.

“Eu vivo em Kafr ‘Aqab, entre Jerusalém e a Cisjordânia, e nunca na minha vida conheci um jornalista em Gaza”, relata Shraydeh. “Além da distância geográfica, há uma enorme burocracia e mais de 700 checkpoints [posto de controle com soldados israelenses que decidem se um cidadão, palestino ou estrangeiro, pode ou não seguir sua rota] que nos separam”.

Para passar pelos checkpoints, conforme explica, é necessário obter autorização, mesmo estando dentro de seu próprio país. “Nós, jornalistas, não conseguimos ter conexão entre nós mesmos. Quando a empresa para a qual eu trabalhava solicitou permissão para eu visitar Gaza, o pedido foi prontamente negado”, prossegue.

Em sua rotina, a jornalista tem de cruzar o checkpoint de Qalandia, o principal posto de controle das forças israelenses entre o norte da Cisjordânia e Jerusalém. “Eu tenho que submeter minha mochila na máquina de raio-x e confirmar minha impressão digital para circular além de Jerusalém. Isso torna qualquer viagem extremamente cansativa”.

Quando o trabalho é executado, há outro obstáculo: “Frequentemente nos impedem de fazer filmagens dentro das nossas próprias cidades. Os soldados israelenses nos impedem ou exigem ver o que foi gravado. Na segunda opção, quase sempre ordenam que a gravação seja deletada imediatamente. Eles não aceitam que você documente as atrocidades diárias que eles cometem”.

Na prática, explica Shraydeh, trata-se de um sistema de censura dos mais rígidos que não se limita apenas ao humor dos militares israelenses. “Os palestinos não estão apenas submetidos à intimidação e à arbitrariedade dos soldados, mas também à violência dos colonos israelenses em seu território”, denuncia. “O governo israelense tratou de armar os colonos que ocupam ilegalmente o território. Então além dos soldados, temos que lidar com o assédio dos colonos, que comumente nos sabotam e destroem nossos equipamentos”.

Prisões arbitrárias como mordaça

Na Cisjordânia, a repórter palestina explica que as violações são outras. Muitos comunicadores estão sob detenção administrativa, espécie de detenção arbitrária sem nenhuma transparência, nem indiciamento ou direito ao processo legal e à defesa.

“O pior de tudo é que é renovável automaticamente: você é condenado a seis meses, depois mais seis meses e assim sucessivamente. Não há limite. Na maioria das vezes, isso acontece simplesmente porque o jornalista escreveu algo que Israel não gostou”, conta. “A única forma de negociar a liberdade é assinando acordos que te obrigam a assumir a autoria dos crimes – muitas vezes fabricados – que eles apontam para o seu caso”.

Também há graves denúncias de que Israel vem implantando softwares de espionagem nos celulares dos profissionais de mídia, tornando possível a extração de dados do seu telefone.

O software mencionado pela repórter nas denúncias que ela recebeu em seu país é o Pegasus. Soa familiar? Basta uma simples pesquisa para recordar que o avançado programa de espionagem era objeto de desejo de Carlos Bolsonaro e do famigerado “gabinete do ódio”. Produto made in Israel perfeito para a arapongagem bolsonarista e a obsessão do clã por monitorar opositores e desafetos de seu governo.

Na Palestina, o aparato de espionagem tem sido usado com outras intenções, de acordo com Shraydeh. “A instalação do software”, explica, “permite a fabricação de casos através da invasão da privacidade dos cidadãos palestinos ou mesmo manipulando dados do seu aparelho”.

Fechamento de veículos

Propagandeada como “a única democracia do Oriente Médio”, a falta de apreço à liberdade de imprensa por parte de Israel também fica evidente com a perseguição e o fechamento a veículos de mídia no período recente. O caso mais famoso é o da Al Jazeera, um dos principais meios de comunicação da região.

Israel ordenou o fechamento de todos os escritórios do canal no país, derrubando seus sinais e confiscando seus equipamentos, com o intuito óbvio de calar um dos poucos contrapontos à  cobertura jornalística e televisiva sobre a guerra. O argumento por parte de Israel foi o mantra de que a emissora incitaria o “antissemitismo” ao denunciar crimes contra a humanidade.

Em nota, a Al Jazeera definiu o episódio como “um ato criminoso que viola os direitos humanos e o direito básico de acesso à informação (…), Trata-se de uma medida política que passa por cima dos princípios que devem vigorar no jornalismo”.

Mas não é só a gigante árabe que sofre com a sanha autoritária dos censores sionistas. Segundo levantamento publicado pelo Sindicato dos Jornalistas da Palestina, somente até janeiro de 2024 Israel atacou, danificou ou destruiu pelo menos 73 instituições da imprensa em Gaza.

A cobertura da mídia dominante ocidental

Não é só o aparato repressivo de Israel que cala as vozes palestinas. O apartheid midiático promovido pelo conjunto das mídias corporativas do Ocidente também é objeto de crítica por parte da jornalista palestina. “Há muita cumplicidade da mídia dominante ocidental no conflito, sem dúvidas”, diz. “A maioria dos meios de comunicação hegemônicos apenas repetem à exaustão as narrativas de Israel. As mentiras, fake news e a desinformação também são um problema, como a noticia falsa sobre a decapitação de bebês pelo Hamas, posteriormente desmentida pela própria Casa Branca”.

Diferente de outros episódios trágicos envolvendo genocídios na humanidade, o que ocorre hoje em Gaza está sendo transmitido em tempo real, com imagens e relatos que inundam as plataformas digitais, causando críticas e questionamentos à cobertura enviesada da mídia dominante. “Mesmo com todas as imagens escancarando a realidade, há uma naturalização da barbárie por parte da imprensa através da adoção de terminologias como WCNSF  – “Wounded Child Non-Surviging Family [no português, “criança ferida de família não-sobrevivente”]”, assevera.

Apesar de todas as barbaridades listadas durante a entrevista, Hind Shraydeh não esmorece. “Vemos com otimismo os levantes de estudantes nos Estados Unidos e em outras partes do mundo. Também aplaudimos as bravas vozes de judeus que têm gritado, em várias partes ‘Não em nosso nome!’, rechaçando o genocídio”, frisa.”Também vemos organizações de trabalhadores portuários se recusando a transportar armas para Israel, uma atitude muito corajosa. Então apesar de tudo, cultivamos a esperança. Precisamos mudar a narrativa e ver Israel responder por seus crimes. Tem de haver justiça”.

 

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