Por José Ribamar Bessa Freire.
Guardem essa data, que ela é quente: 14 de julho de 2013. Na França, o povo comemora nas ruas mais de dois séculos da queda da Bastilha. Em Brasília, no Estádio Mané Garrincha, às 20h15, termina o jogo Flamengo x Vasco. Nessa hora, no Rio, na Rocinha, vários policiais militares, entre eles o soldado Douglas Roberto Vital, o “Cara de Macaco”, prendem o ajudante de pedreiro, Amarildo Dias de Souza, diante de uma birosca perto de sua casa. Ele é levado à Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) local “para prestar esclarecimentos”. Nunca mais foi visto. Até hoje.
Amarildo ainda ouviu os flamenguistas comemorarem o gol no final do primeiro tempo, mas não chegou a comer o peixe que ele havia pescado naquele dia e que sua mulher acabara de fritar. Nascido e criado na Rocinha, o ajudante de pedreiro, 43 anos, carteira assinada com salário mensal de R$300, vivia com a mulher Elisabete e seis filhos num barraco de um só cômodo, sem banheiro, com esgoto a céu aberto, numa área com muitos casos de tuberculose, verminose, hepatite, diarreia e disenteria.
As condições de vida de Amarildo, por si só, já constituem um crime daqueles que bradam aos céus e clamam a Deus vingança. Naquela parte do morro, não entra ambulância, não chega nem mototáxi. Seus vizinhos lhe deram o apelido de Boi, porque era ele quem transportava solidariamente os doentes nos braços ou nos ombros, como ocorreu com Carlos Marques, 21 anos que, agradecido, tem participado dos inúmeros protestos exigindo esclarecimentos sobre o paradeiro do amigo.
Cadê o Amarildo?
Os protestos começam no dia seguinte, quando Amarildo não volta para casa, nem comparece à obra onde estava trabalhando, em Copacabana. Cada dia que passa, os protestos aumentam. Moradores da Rocinha, depois de organizarem buscas para localizar o corpo, sem sucesso, fizeram já várias passeatas pelo túnel Zuzu Angel rumo à Zona Sul, fechando as duas vias da Autoestrada Lagoa-Barra. Eles se juntaram ao grupo acampado perto do edifício onde mora o governador Sérgio Cabral, na av. Delfim Moreira, na Praia do Leblon.
– Somos todos Amarildos – dizem outros manifestantes que há nove dias acamparam desta vez dentro da Câmara Municipal do Rio. Eles se recusam a fornecer os nomes, declaram que se chamam Lúcia Amarildo, Pedro Amarildo, todos Amarildos. Os professores grevistas do Rio também realizaram várias manifestações em frente ao Palácio Guanabara e, entre outras reivindicações específicas da categoria, gritam palavras de ordem, perguntando pelo paradeiro de Amarildo, que já se tornou um símbolo dos desaparecidos no Rio de Janeiro.
Os dados são estarrecedores. De 1991 até maio deste ano, o Estado do Rio registrou oficialmente um pouco mais de 92 mil desaparecimentos. Não é chute, não é estimativa, são dados concretos com listas nominais divulgadas pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), órgão responsável pelas estatísticas da Secretaria de Segurança. Só nos primeiros seis meses de 2013, sumiram 2.655 pessoas, uma média de 15 casos por dia.
Para o coronel Paulo Teixeira, diretor do ISP, parte dos sumiços é temporária e voluntária, embora não haja registro das pessoas que reaparecem. No entanto, a polícia tem responsabilidade em muitos casos.
– A estatística oficial de homicídios dolosos está aquém da realidade. O Rio está coberto de cemitérios clandestinos. A Baía de Guanabara está repleta de corpos ocultados. Há um número incontável de desaparecidos – declarou ao Globo o coordenador do Rio de Paz, Antônio Carlos Costa
Os Amarildos
Quem andou pesquisando o assunto para sua tese de doutorado foi o sociólogo Fábio Araújo, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio. Ele desconfiou da redução dos índices de homicídios dolosos (intencionais) e de mortos em conflitos com a polícia e estabeleceu uma relação disso com o aumento do número de desaparecidos: “Fica claro que, com o aumento de desaparecidos e a queda de homicídios, muitas mortes foram ocultadas” – disse ele à Folha de São Paulo.
O sociólogo aponta a existência de milícias e de grupos de extermínio formados principalmente por policiais militares corrompidos, além dos traficantes,que seriam responsáveis pela maior parte dos desaparecimentos, na realidade, assassinatos.
A população carioca, fluminense e de todo o Brasil também desconfia. Na terça-feira, atores e integrantes da ONG Rio de Paz, pintados de vermelho, simbolizando o sangue das pessoas mortas, fizeram um ato na escadaria da Assembleia Legislativa do Rio.
No Rio, num dia sim e no outro também, pipocam manifestações, exigindo das autoridades o esclarecimento do caso, que ganhou repercussão internacional com a campanha de mobilização “Onde está Amarildo?”, lançada pela Anistia Internacional, que não descarta a possibilidade de levar o caso à OEA e à ONU.
Os deslocamentos do governador Sérgio Cabral são monitorados pelos manifestantes, que o perseguem, como a alma de Nicole, na novela “Amor à Vida”, atormenta Thales, o trambiqueiro. Os hackers não deixaram em paz nem sequer o site do PMDB, onde postaram a frase: “Sérgio Cabral, cadê o Amarildo?”. Enquanto esse desaparecimento não for desvendado, tudo o que for feito para infernizar a vida de Sérgio Cabral é ainda muito pouco. Como autoridade máxima do Estado, o governador tem responsabilidade no encaminhamento do caso.
Um dos policiais que deteve Amarildo, Douglas Roberto Vital, foi acusado de haver agredido antes pelo menos dois moradores da favela, Luiz Gustavo de Souza e um adolescente de 16 anos, primo de Amarildo, contra quem teria forjado provas.
– A toda hora, esse Vital dizia que ia me matar – falou ao Globo o primo de Amarildo. – Eles me levaram para o DPO da UPP.Eles me deram choque, colocaram um saco plástico na minha cabeça e enfiaram minha cabeça na privada e deram descarga. Mas meus pais não saíram da cola deles. Acho que como não conseguiram nada comigo, acabaram pegando meu primo Amarildo e o mataram.
O Secretário Estadual de Segurança, José Mariano Beltrame – até prova em contrário um sujeito decente – afirmou que vai acompanhar de perto o inquérito e não descartou a possibilidade de um envolvimento de policiais ou de traficantes no sumiço. Ver para crer. Se esse caso não for desvendado, além de Cabral, Beltrame vai ficar com a ficha suja.
A sociedade não pode permitir que essas práticas continuem matando sonhos. Elizabete contou aos jornais que seu marido, o ajudante de pedreiro que ergueu tantas paredes para os outros, estava quase realizando um sonho:
– Ele estava comprando material para construir o segundo andar de nossa casa. Os tijolos estão ali, no telhado.
Fonte: Diário do Amazonas.