Por Catarina Duarte, Ponte.
Monica Benicio viu Marielle Franco pela última vez nas frestas de um dos elevadores da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Naquele dia, 14 de março de 2018, elas haviam almoçado juntas e, no tardar do dia, o plano era que Marielle voltasse para casa na hora do jantar. O assassinato rompeu aquele compromisso e os demais que juntas elas traçaram. Monica passou a doer. Demorou seis anos e 10 dias até que fosse revelado quem planejou o crime que vitimou também o motorista Anderson Gomes. A ligação do então chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Rivaldo Barbosa, com a trama assassina a desestabilizou.
No fim de março, a Polícia Federal apontou que os assassinatos foram cometidos a mando dos irmãos Domingos e Chiquinho Brazão. Foi dupla quem contratou o ex-policial militar Ronnie Lessa para cometer o assassinato, segundo a PF. Rivaldo teria planejado o crime e atuado para obstruir a investigação.
“Se, por um lado, o nome dos irmãos Brazão não trazia grande surpresa, o de Rivaldo foi o que mais me desorganizou emocionalmente”, contou Monica em entrevista à Ponte.
Monica se sentiu desamparada. Rivaldo foi uma das primeiras figuras do Estado a receber a família de Marielle. O então chefe da Polícia Civil prestou solidariedade, disse ser amigo da vereadora e que as investigações teriam prioridade. Contudo, para ela, o que Rivaldo fez foi criar condições para dar certeza à impunidade. “Isso foi muito violento”, diz.
A elucidação dos mandantes revisita a relação de poder das milícias com os representantes públicos, fala Monica. “O caso da Marielle escancara uma relação podre entre os poderes que operam a nossa cidade, o nosso estado, o nosso país, sendo essa relação da política, da polícia e das milícias”.
“O Rio de Janeiro é um grande laboratório, é um berço disso tudo. O caso da Marielle, ao nos apresentar isso de uma maneira muito didática, também nos chama a responsabilidade e ao compromisso de combater diretamente, com mais incidência e urgência do que nunca”, fala Monica.
Marielle, define ela, representava a luta para a construção de uma sociedade igualitária, livre de opressões e violências, “que é o oposto do que está simbolizado nessa política também, operada hoje por alguns políticos em acordo com a milícia”.
“Quando olhamos para o caso da Marielle, nós entendemos que a milícia não é só essa estrutura apodrecida, ela não é o Estado paralelo. Ela hoje é o próprio Estado”, pontua.
Ela conta que nunca elaborou como seria de fato saber quem mandou matar Marielle, embora rezasse noite e dia para que isso se concretizasse. Monica chegou a fantasiar que a elucidação do caso pudesse trazer um sentimento de paz ou alívio. “Mas, na verdade, tudo que encontrei na elucidação dos mandantes foi um sentimento de revolta”, diz.
Livro sobre história de amor
A revolta também é um sentimento presente ao longo do livro “Marielle e Monica: uma história de amor e luta” (Ed. Rosa dos Tempos), que será lançado no sábado (13/4) na livraria Folha Seca, no Rio de Janeiro. É uma forma de eternizar o que viveram e sobre muitos dias de uma vida, escreve a vereadora do PSOL no Rio de Janeiro logo nas primeiras páginas.
Monica conta que recebeu várias propostas para escrever ainda em 2018, época em que estava muito imersa na luta por justiça, e que teve certa resistência quanto a colocar a dor que sentia em palavras. O central para ela, naquele momento, era conquistar apoios internacionais, acompanhar as investigações e trazer a compreensão sobre o legado da esposa assassinada. “Legado não é só o que se deixa, mas também o que se leva adiante”, diz.
O livro passou a ser escrito quando Monica entendeu que contar a história de amor com Marielle tinha impacto sobre outras pessoas. “O livro também é um manifesto do direito às famílias LGBTs existirem e, sobretudo, que possa servir também para colocar os desafios postos à maior parte da configuração das famílias LGBTs”, fala.
Ela quis contar sobre os desafios enfrentados junto com Marielle para poderem ser amar na plenitude, sem ter que se esconder. O que elas passaram não é exceção, faz questão de dizer Monica, mas sim a realidade de muitos. “Os desafios que enfrentamos costumam ser a regra para a formação de núcleos LGBTs.”
Com a publicação, ela espera que outras famílias se identifiquem, se reconheçam e, sobretudo, que o debate possa avançar para que as futuras gerações não precisem sofrer.
A história de amor entre Marielle e Monica passou a ser escrita como um diário nas andanças de Monica na busca por justiça. “A primeira parte do livro é quase que um manuscrito, porque eram relatos que eu estava colocando num diário para ter as nossas lembranças, para não esquecer do que foi a nossa história, para não correr o risco de que essas memórias pudessem ser perdidas”, conta.
A princípio, o livro seria encerrado com o dia do assassinato. Na data, Monica acordou na madrugada assombrada por um pesadelo. Foi acolhida pelo abraço de Marielle com quem passou parte daquele dia. Trocaram juras de amor e beijos. O dia acabou sem que Monica soubesse o que fazer com a metade dela que continua viva após o crime.
Monica deveria ter fechado o livro em um ano, mas o finalizou em cinco, entregando a versão final em dezembro passado. “Isso porque essa resistência da elaboração do luto era determinante para que eu pudesse enrolar tudo que enrolei de tempo e de prazo para esse livro”, diz.
Com a extensão do prazo, outros fatos foram incluídos na história. A eleição de Monica à Câmara Municipal do Rio de Janeiro é uma delas. A obra foi redesenhada para dizer como a história de amor continuou, mesmo que de maneira nem tão detalhada como a primeira parte. “Ele acaba sendo um livro que foi se desenhando conforme a própria passagem de tempo”, explica.
Resiliência uniu Marielle e David a Monica
O livro também fala de outro luto, o da perda de David Miranda. O ex-deputado federal morreu em 9 de maio de 2023. Monica conta que a ligação do trio podia ser traduzida pela palavra resiliência. Hoje, ela busca ser resiliente para lidar com a vida sem os dois.
“Confesso que existir em um mundo sem Marielle e sem David é um grande desafio para mim”. A dupla ensinou Monica a ter pulsão pela vida, tinham alegria em viver, valorizavam e gostavam de estar vivos. Eram eles quem estimulava a arquiteta a olhar para a vida com beleza, desejo e tesão.
Assim como a morte de Marielle, a partida de David ainda não parece muito real, diz Monica. “Eu sempre releio mensagens, revejo nossos vídeos juntos. Ainda é muito difícil lidar com a ausência deles”.
David, conta Monica, mergulhou com ela no luto por Marielle e a resgatou. O ex-deputado foi central para a vereadora entender o problema que tem com o álcool. “Sempre identifiquei, em alguma medida, que a minha relação com o álcool não era muito saudável, mas isso veio se escalonando na minha vida”, diz.
Ela dedica um capítulo inteiro a expor o problema. Nele, ela relata que teve momentos na vida em que o álcool era mais dramático, mais profundo e atrapalhou mais. A morte de Marielle tornou a bebida uma anestesia, uma fuga. “Era acessado por mim como uma ferramenta para não ter que lidar com os problemas”, comenta.