Enquanto os trabalhos de obra da quarta pista da BR-101 no Morro dos Cavalos estão em andamento desde 9 de junho de 2014, os Guarani continuam reivindicando a homologação de sua Terra Indígena.
Reportagem de Joana Zanotto, Luara Loth e Thaís Ferraz
No trecho da BR-101 que compreende o Morro dos Cavalos, na Palhoça (SC), uma comunidade se diferencia do caos local. O cacarejo das galinhas e o grito das crianças que brincam no pátio da escola da aldeia Itaty se chocam ao som dos automóveis que trafegam na rodovia. Segundo a cacique Eunice Antunes, cerca de 126 indígenas pertencentes ao grupo indígena Guarani moram em 32 casas distribuídas ao longo e ao topo do morro.
Atualmente, a escola tem lugar de destaque na aldeia, bem ao centro. Ali, a comunidade se reúne, recebe ligações e realiza as atividades pedagógicas destinadas às crianças e aos jovens do ensino fundamental e médio. Acima, subindo pelo caminho de chão batido, fica a casa de reza, a Opy, onde são praticados os cultos religiosos. Também há um posto de saúde e uma casa de artesanato.
Apesar de a área de 1988 hectares ter sido demarcada em 2010, o terreno ainda não foi homologado, e os indígenas podem ocupar apenas parte dele. Isso significa que o povo Guarani espera há quatro anos pelo reconhecimento da Terra Indígena (TI) pela presidente da República e, por se tratar de um bem da União, ela ainda precisa ser registrada na Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e no Cartório de Registro de Imóveis (CRI).
Ou seja, faltam apenas dois passos para a conquista definitiva da área de que têm direito. Mas antes, é preciso conciliar definitivamente os interesses dos Guarani, do Estado e dos moradores não indígenas.
O presente e o passado dos Guarani
Os olhos negros e expressivos da cacique Eunice estão compenetrados enquanto fala sobre seus antepassados, que caminhavam por toda a extensão do litoral carregando o fogo e a água sagrados. Ela conta que uma forte característica dos Guarani são seus movimentos migratórios, em busca da terra sem mal, Yvy Mara’ey. O Morro dos Cavalos era um ponto de parada para o fortalecimento das chamas. Têm-se relatos sobre a presença indígena na região há muitos anos. Alguns Guarani mais velhos recordam de terem vivido no local quando Getúlio Vargas era presidente da República.
Eunice nasceu no oeste do estado. Ela também fez várias caminhadas antes de chegar à aldeia, onde mora agora. No próximo ano, ela se formará na primeira turma do Curso de Licenciatura Intercultural dos Povos Indígenas do Sul da Mata Atlântica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), iniciado em fevereiro de 2011. Foi eleita pela comunidade para representar o grupo como interlocutora. É a segunda mulher cacique a liderar os Guarani no Morro dos Cavalos. A anterior foi a falecida Dona Aurora.
A cacique estava à frente das discussões sobre a duplicação da BR-101 em encontro que reuniu, em março deste ano, Ministério Público Federal, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, Funai e Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte, no Ministério da Justiça, em Brasília. O evento intermediado pelo ministro José Eduardo Cardozo acordou o início das obras da quarta faixa da rodovia mediante a garantia dada pelo ministro de pagamento das indenizações para as famílias que devem desocupar o território indígena.
As reivindicações continuam as mesmas. Eles querem suas terras homologadas. Além disso, a quarta pista deve ser uma medida paliativa e não definitiva. Tanto o Tribunal de Contas da União quanto os indígenas defendem a construção de dois túneis, como alternativa que contemple meio ambiente, aspecto econômico e direito indígena.
O início do conflito
Essa disputa se estende desde 1993, quando a Fundação Nacional do Índio (Funai) constituiu um grupo de trabalho (GT) de identificação e delimitação de terras coordenado pelo antropólogo Wagner de Oliveira. A identificação foi rejeitada pelas lideranças indígenas e precisou ser submetida a algumas alterações, de modo a garantir o direito de maior participação da comunidade indígena na sua elaboração.
A recusa fez com que a Funai constituísse também um novo GT, desta vez sob a responsabilidade da antropóloga Maria Inês Ladeira. O estudo antropológico, arqueológico e topográfico foi concluído, aprovado pela Fundação e publicado no Diário Oficial da União em 18 de dezembro de 2002. Nessa mesma época, foi finalizado o estudo de impacto socioambiental da duplicação da BR-101 coordenado pela antropóloga Maria Dorothea Post Darella.
Desde então, o processo enfrenta forte resistência. A legitimidade da demarcação foi contestada diversas vezes entre 2002 e 2013, através de petições e ações populares que questionavam a validade do relatório aprovado e pediam a anulação da portaria.
Em 2009, um empresário da área de maricultura chamado Alexandre Augusto de Barros Palpites abriu uma ação popular ainda não julgada contra a demarcação. O documento alega que a demarcação é ilegal e que a Funai, com auxílio de ONGs e antropólogos, teria trazido índios de fora da região para ocupar o Morro dos Cavalos. Os opositores, organizados pelos conselhos comunitários e organizações de bairros do entorno da área demarcada (Enseada do Brito, Maciambú Pequeno e Araçatuba) organizaram protestos, chegando a ocupar a sede da Funai em Palhoça e a fechar a rodovia BR-101.
A Fundação do Meio Ambiente (FATMA) e a Procuradoria Geral do Estado de Santa Catarina também ofereceram resistência. O argumento utilizado pela FATMA era de que a demarcação estaria incluindo áreas do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro. A Procuradoria, por sua vez, entrou em 2013 com representação no Ministério da Justiça, em nome do Estado de Santa Catarina e por determinação do governador Raimundo Colombo.
Argumentos ignoram questões antropológicas
Setores da mídia também se posicionaram contra as demarcações. Em 2007, a revista Veja publicou matéria intitulada Made in Paraguay escrita por José Edward. O texto afirmava que a Funai “tenta demarcar área de Santa Catarina para índios paraguaios, enquanto os do Brasil morrem de fome.” O trabalho ignora questões antropológicas envolvendo o povo indígena. A população Guarani ultrapassa 100 mil pessoas em cinco países da América do Sul: Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai. Eles têm um entendimento sobre território que difere do usual nas sociedades ocidentais: ou seja, na visão Guarani, há um só território.
No livro Etnohistória, História Indígena e Educação, lançado em 2012 pelo Laboratório de História Indígena da Universidade Federal de Santa Catarina, o depoimento de um indígena exemplifica bem essa diferença:
— Para mim, eu nasci aqui no Brasil, eu nasci aqui no Paraguai. Mas, para você, eu nasci aqui no país Argentina. Para mim não, para mim não tem só um Paraguai. Tudo isso aqui é mundo Paraguai. Tudo é Paraguai, porque nós índios Guarani não temos bandeira, não temos cor. E para mim deixou tudo livre, não tem outro país.
Apesar das contestações, a demarcação física e o levantamento para a indenização das benfeitorias dos proprietários de terrenos localizados dentro do perímetro demarcado foram realizados nos anos seguintes. A etapa final do processo, que compreende a remoção dos moradores não indígenas, está em vigor desde 2013.
A despeito da Lei, resistência continua
Mas, mesmo com o estado avançado do processo demarcatório, o fim dos conflitos ainda parece estar distante. Os proprietários que perderão suas posses, incluindo os que estão na “lista de má-fé” (ou seja, que não possuem direito à indenização do Estado por terem comprado suas terras após 2008, quando a demarcação foi oficializada) continuam resistindo à demarcação. Como a Funai indeniza apenas benfeitorias, ou seja, áreas construídas, e não restitui o valor gasto na compra de terrenos ou o valor da propriedade, os donos alegam que as benfeitorias são muito baixas para garantir que os desalojados possam adquirir outro espaço para morar. Até agora três famílias deixaram o local.
A resistência às demarcações é comum quando se trata de terras indígenas. Em Santa Catarina, elas representam 77,7 mil hectares – menos de 1% do território do estado. Porém os indígenas estão na posse de 38 mil hectares, ou seja, nem a metade. São 25 terras e reservas ocupadas por mais de 10 mil Kaingang, Xokleng e Guarani; dessas, apenas as terras Xapecó e Toldo Chimbague estão homologadas.
A demarcação das terras indígenas é de responsabilidade da União Federal, e o processo passa por oito etapas: identificação e delimitação; publicação; contraditório; análise das contestações; declaração da ocupação; demarcação física; homologação e registros (mais detalhes do processo no item Passo-a-passo da homologação de terras, abaixo).
A Constituição Federal ampara as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas de acordo com os usos, costumes e tradições dos povos, como as terras por eles habitadas em caráter permanente, utilizadas para as atividades agrícolas imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e necessárias a sua reprodução física e cultural. A posse permanente declarada na Constituição é uma garantia do futuro de que as terras inalienáveis e indisponíveis são destinadas para sempre ao grupo, e não um pressuposto de ocupação efetiva no passado.
Duplicação da BR-101
Na década de 1960, a BR-101 também foi razão de tensões durante a sua construção. Alcindo Moreira, Guarani do M’biguaçu, relata a saída de seu povo naquela época em trabalho feito pela Comunidade Guarani Itaty, Comissão Guarani Nhemonguetá, Conselho Estadual dos Povos Indígenas, Conselho Indigenista Missionário e Comissão de Apoio aos Povos Indígenas:
— Aí eu sei que afinal a federal (BR 101) já ia passar. Aí o que nós ia fazer.(…) Aí sei que chegaram, avisaram (…), aí ela disse, não dá: “eu vou embora, daqui a cinco dias vai chegar a máquina”. E ela de medo, eu acho eu. Eu acho que ela de medo, não ficou. Aí ele ia fazer a estrada em cima, viu… Ia sair bem naquela curva, bem naquela curva. Aí eu sei que fizeram.
Se nos anos 60 os indígenas saíram por medo, hoje eles resistem, respaldados por lei que garante seus direitos.
Passo-a-passo da homologação de terras
(Retirado de artigo escrito por Clovis Antonio Brighenti, no livro Etnohistória, história indígena e educação, organizado pelo Laboratório de História Indígena da Universidade Federal de Santa Catarina)
A demarcação das TIs é de responsabilidade da União Federal (Constituição Federal – CF Art. 231). Por se tratar de direito originário, a demarcação é um procedimento administrativo regulado por um decreto, criado especificamente para essa finalidade. No presente, as demarcações seguem o estabelecido no Decreto MJ nº 1775/1996. Após a realização do estudo técnico é produzido um relatório circunstanciado de acordo com a Portaria MJ nº 16/1996.
O decreto MJ nº 1775/96 estabelece oito etapas, desde a identificação até o registro definitivo:
1-Identificação e delimitação – O Presidente da Funai estabelece uma Portaria designando um Grupo Técnico, coordenado por um/a antropólogo/a, o/a qual elabora um relatório circunstanciado, contendo os elementos antropológicos que fundamentam o direito indígena sobre a referida Terra;
2- Publicação – Um resumo do relatório circunstanciando e o mapa com a delimitação (memorial descritivo) é publicado no Diário Oficial da União, Diário Oficial do Estado e uma cópia do mesmo é encaminhado encaminhada à/s prefeitura/s onde se localiza a Terra Indígena;
3 – Contraditório – Também conhecido como contestação ao relatório. Todos os que se sentirem atingidos pela referida demarcação podem manifestar-se junto à Funai, para denunciar vícios e/ou para demandar indenizações;
4 – Análise das contestações – A Funai faz uma análise das contestações e encaminha os autos para decisão do Ministro da Justiça;
5 – Declaração de ocupação – Etapa em que o Ministério da Justiça, após análise do relatório e das contestações, declara os limites da TI, mediantes publicação de Portaria no Diário Oficial da União;
6 – Demarcação física – Ocorre após a publicação da Portaria Declaratória, consiste na colocação de dos marcos nos limites e indenização aos ocupantes não indígenas quando houver;
7 – Homologação – Ato de reconhecimento da TI pelo Presidente da República;
8 – Registro – Por se tratar de bem da União, a TI é registrada na Secretaria de Patrimônio da União – SPU e no Cartório de Registro de Imóveis – CRI.
Fonte: Mídia Maruim
Foto: Vitor Shimomura e Luara Loth