A Kiwi Companhia de Teatro está em cartaz em São Paulo até 17 de abril com a peça ‘Morro como um País – Cenas sobre a Violência de Estado’.
Por Natália Natarelli.
O Prêmio Shell deste ano conseguiu repercussão menos modorrenta do que a de costume em razão do melhor dos motivos: Fernanda Azevedo, da Kiwi Companhia de Teatro, vencedora na categoria melhor atriz, leu um trecho de “As Veias Abertas da América Latina” em que Eduardo Galeano expõe o apoio da multinacional petrolífera à ditadura nigeriana.
Essa postura reflete um posicionamento constante do grupo que não tem medo de “fazer da arte, do teatro, algo necessário para se pensar o mundo”, nas palavras da própria Fernanda Azevedo. Conforme pensa a Kiwi, como se lê riscado a giz na parede de sua sede em São Paulo, “a arte deve responder ao perigo de uma época”.
O grupo está em cartaz com a peça Morro como um País – Cenas sobre a Violência de Estado, que discute o “estado de exceção permanente”. A peça faz referência a situações vividas na Ditadura Militar Brasileira e nas ditaduras do Cone Sul (Argentina, Uruguai e Chile) e a elementos presentes ainda hoje no Brasil.
Segundo Fernando Kinas, diretor da Kiwi, “queríamos debater a gestão de populações a partir do modelo da exceção. Mesmo em regimes tidos como democráticos, a exceção continua sendo um instrumento de gestão populacional, de organização da sociedade e de controle social para a manutenção dos privilégios”.
A peça está em cartaz às quartas e quintas-feiras no CIT Ecum (Rua da Consolação, 1623), em São Paulo, até 17 de abril. Confira a entrevista com Fernanda Azevedo e Fernando Kinas, da Kiwi Companhia de Teatro.
Carta Maior: Por que vocês decidiram fazer uma peça de teatro explorando o tema da ditadura civil-militar no Brasil?
Kinas: Os projetos que a gente desenvolve partem de inquietações ou indagações que têm muita relação com o contexto social. Eles surgem a partir de uma espécie de diagnóstico, de análise do ambiente em que vivemos, também do ponto de vista internacional.
Por exemplo, o projeto que fizemos anteriormente, Teatro/Mercadoria, discutia mercantilização, que não é um fenômeno nacional, brasileiro, mas que tem relação com nossa realidade por causa dos processos de privatização, seja na época do Fernando Henrique Cardoso [1995-2002], ou no governo Dilma, que fez as privatizações “brancas”, as parcerias público-privadas, as terceirizações etc. Portanto, o tema geral era esse porque nos parecia evidente que o momento em que vivíamos e continuamos vivendo exigia uma análise crítica sobre as circunstâncias dessas privatizações e sobre o alcance delas, como a privatização do ar, da educação, do transporte e também do corpo, especialmente do corpo da mulher, através do tráfico de pessoas e de órgãos ou da prostituição. Enfim, o projeto surge de um diagnóstico que é político e social e que tem uma tradução estética e artística.
Nosso projeto mais recente se chama Morro como um país. Mais uma vez partimos do diagnóstico de que era muito importante discutir não apenas os episódios relacionados à ditadura brasileira, mas também o conceito de “estado de exceção permanente”. A nossa peça, inclusive, não estava ligada com a efeméride dos 50 anos do Golpe, tanto que estreou em 2013. Queríamos debater a violência institucional, a violência de Estado e a gestão de populações a partir do modelo da exceção. Mesmo em regimes tidos como democráticos, a exceção continua sendo um instrumento de gestão populacional, de organização da sociedade e de controle social para a manutenção dos privilégios e do status quo.
Carta Maior: Vocês acharam que esse tema não era muito tratado no teatro?
Kinas: Também, mas esse era um motivo suplementar, não o principal.
Azevedo: Agora surgiram várias montagens sobre o tema da ditadura, o que é muito importante porque a arte deve discutir a sociedade. Imaginamos que a arte pode ser uma potente ferramenta de discussão crítica da sociedade. Mas nós estamos a bastante tempo trabalhando com isso e vamos continuar, já que este ano vai passar e precisaremos continuar falando sobre o que resta da ditadura no nosso país.
Carta Maior: Qual a configuração atual do Brasil que se encaixa nesse conceito de “estado de exceção permanente”?
Kinas: Este tema é muito vasto, mas vou tentar resumir. A Lei Geral da Copa é um bom exemplo. Esta lei estabeleceu uma série de exceções dentro da legalidade institucional brasileira, exceções que servem aos interesses do grande capital, do capital internacional, representados pela FIFA (não somente a FIFA, mas todos os seus fornecedores e sua formidável rede política que inclui gigantescas corporações e governantes de quase todo o planeta).
Todo esse aparato político (e, só num segundo momento, esportivo) é que define as intervenções no nosso “funcionamento jurídico normal”. Ou seja, a ideia é que o próprio “funcionamento normal” de um país inclui a exceção para possibilitar a remuneração do Capital, para manutenção do status quo, pra que o establishment não sofra nenhuma espécie de prejuízo. A exceção faz parte da regra. Ou, se preferirmos, a regra exige a exceção, para que a máquina gire.
A Lei Geral da Copa é exemplar nesse sentido, porque mostra o funcionamento das sociedades contemporâneas ditas democráticas e dos seus arranjos para permitir que privilégios sejam mantidos ou aumentados. Essa lei flexibiliza outras leis muito importantes no Brasil (venda de bebidas alcoólicas, meia-entrada, concessão de vistos de entrada no país, regulação do comércio nas imediações dos estádios etc.). Isso revela um funcionamento “atípico”, mas que não é atípico.
Azevedo: É interessante pensar no conceito de estado de exceção como legalidade extralegal. É só pensar na matança nas periferias: está fora da lei, da Constituição Brasileira, mas a gente sabe como a Polícia Militar tem quase que um direito instituído de fazer o que quiser. Ela entra na casa das pessoas sem mandato, tortura, mata… Ainda existe muita tortura nas nossas prisões. O Brasil é o único país onde a tortura aumentou depois do período de ditadura strictu sensu.
Carta Maior: Apesar da persistência do estado de exceção permanente, provavelmente ele se acentua no Brasil em razão da ditadura e das coisas que a gente não solucionou.
Kinas: Sim. Depois das chamadas “Jornadas de Junho” houve um efeito quase imediato de reação. Por exemplo, esse projeto de lei que define o crime de “terrorismo” [Projeto de Lei do Senado (PLS) 728, de 2011].
Considerar que essas manifestações, mesmo aquelas em que há violência, sejam terrorismo é uma extrapolação absurda, um exagero sem tamanho. Mas de novo as palavras nos enganam, porque não é um “exagero”. Faz parte da lógica da exceção maximizar o potencial dano de um movimento popular para poder reprimi-lo com ainda maior ferocidade. Isso é do jogo da política.
É só ver o que acontecia no Brasil em 1963 e até março de 1964. Os avisos de que “o país estava à beira de um cataclisma total”, as senhoras da boa sociedade desesperadas porque o “comunismo estava batendo à nossa porta”, a ideia de que “o Brasil iria virar uma grande Cuba” etc. Guardadas as diferenças, que existem e são muitas, desde junho de 2013 há um recrudescimento da criminalização das manifestações e dos movimentos que se colocam no campo crítico. Morro como um país, inclusive, ganhou uma certa atualidade que não estava prevista.
Carta Maior: Falando da peça, como ela é estruturada?
Kinas: Trabalhamos com teatro-documentário. Nós não usamos personagens, ainda que algumas cenas possam ter sugestões de personagens. Nossa peça não usa ideias como conflito e diálogos intersubjetivos, progressão ou desenlace, que são categorias tradicionais do teatro dramático. No lugar disso temos materiais brutos, retirados da realidade: um trecho de um livro de sociologia, uma canção, um poema, um trecho de uma peça de teatro (no nosso caso Antígona relida por Bertolt Brecht), um depoimento de um prisioneiro político, imagens projetadas etc.
Tentamos traduzir em cena o conceito de “exceção permanente” usando a ditadura civil-militar do Brasil em algumas cenas, mas também utilizamos informações das ditaduras do Cone Sul (Argentina, Chile, Uruguai). Por exemplo, fazemos referência aos Tupamaros, grupo que resistiu ao regime militar no Uruguai. Também utilizamos fotos referentes aos “voos da morte”, nos quais os corpos de militantes que morreram na ditadura argentina eram jogados no rio da Prata e no Atlântico pelos militares.
Azevedo: Mais do que um processo de catarse, o que nos interessa é pensar junto com as pessoas o que significou a ditadura e o que significa hoje. Nós não nos distanciamos dos sentimentos: o público pode ficar mal ou rir numa cena, mas o efeito de distanciamento, que vem do teatro do Brecht, é muito importante. É nele que se encontra o espaço para o pensamento e para o diálogo verdadeiro entre o que está acontecendo em cena e o público. Porque, se o teatro pode ajudar em alguma coisa, é justamente nesse processo de revelar coisas que antes não éramos capazes de ver. E é através da observação comum e do “pensar junto” que podemos propor saídas para os problemas.
Mas estas saídas e ações que vão surgir a partir do evento teatral precisam acontecer também fora do teatro, junto com os movimentos sociais. Esta é outra característica do nosso trabalho: a parceria com os movimentos sociais, justamente porque acreditamos que, em conjunto, o potencial transformador é muito maior.
O movimento Mães de Maio, os familiares de mortos e desaparecidos políticos, o coletivo Merlino, a Frente de Esculacho Popular, a Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva estão próximos da nossa Companhia. Nosso trabalho com estas organizações e movimentos é, muitas vezes, de intensa troca, realmente de mão dupla, tanto que somos muito chamados para manifestações, atos de rua, seminários etc., o que tentamos responder na medida das nossas forças.
Kinas: Queremos fazer com que o teatro discuta “mecanismos”. Como o teatro dá conta disso? Não é só contar o que aconteceu, mas revelar o mecanismo que permitiu a emergência deste ou daquele fenômeno. Essa é a nossa ambição e para isso tentamos unir inovação formal com conteúdos críticos. Na peça temos um relógio que anda para trás, como os que existem em barbearias, e ao mesmo tempo há um texto que diz “o tempo avança recuando”. É preciso mostrar esta espécie de progresso conservador. Há muitas interpretações que veem o golpe e a ditadura justamente como um movimento de modernização do país, mas uma modernização conservadora, mantendo as injustiças, aumentando a desigualdade.
Fotos: Bob Sousa
Fonte: Carta Maior