Design de moda do povo Piratapuya, do Alto Rio Negro, se inspira na ancestralidade e na espiritualidade de seu povo para criar suas peças (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Manaus (AM) – A trajetória do design de moda Sioduhi Lima (ou apenas Sioduhi) passou rápido em dez anos. Indígena do povo Piratapuya, ele aprendeu a falar português com fluência apenas aos 17 anos, quando entrou para a faculdade de Administração, em Manaus. Até então, sua língua nativa era apenas o tukano, idioma predominante dos povos indígenas do Alto Rio Negro, no norte do Amazonas.
Em 2020, quando criou a Sioduhi Studio, teve aulas de fonoaudiologia para melhorar a fala, se expressar de forma mais articulada e gerenciar sua recém-empresa. Também iniciou o curso Técnico em Modelagem de Vestuário na Escola Técnica Estadual de São Paulo (2019-2020), mas precisou interromper por causa da pandemia da Covid-19. Hoje, optou pela formação autodidata e pelo diálogo com o saber de seus ancestrais e da cosmovisão dos povos originários, unindo elementos da tecnologia e da cultura popular.
Nascido na comunidade Mariuá, no Médio rio Uuapés, em pouco tempo Sioduhi, de 27 anos, ingressou no disputado mundo da moda. Há apenas dois anos, fundou sua própria marca e vem se destacando não apenas como designer de moda, mas sobretudo como agente de mudança e de provocação decolonial, envolvendo-se na luta pelos direitos dos povos indígenas, das mulheres e dos grupos lgbtqia+. Na língua nativa, seu nome refere-se ao espírito do Baiá, o principal cantor e compositor de seu povo.
Depois de uma temporada de três anos vivendo em São Paulo, ele voltou a morar no Amazonas, dividindo-se entre Manaus e São Gabriel da Cachoeira. Foi durante seu retorno que veio a inspiração para a quarta coleção de sua carreira: “Manioqueen”, lançada durante o Brasil Eco Fashion Eco Week , no início deste mês. Foi a estreia da marca em um desfile presencial. Em 2021, o desfile foi no formato remoto, em evento batizado de Fashion Film.
As peças de “ManioQueen” (nome que funde a língua nativa da ‘mandioca’ e a palavra em inglês referente à nobreza) combinam elementos indígenas tradicionais com os conceitos futuristas.
“Esta coleção tem um domínio de cores pastéis e leves porque quis expressar o futurismo indígena, a atemporalidade, a leveza e um pouco de bom humor, começando pelo nome da coleção”, explica Sioduhi, em conversa com a Amazônia Real.
Desde seu retorno à terra onde nasceu, o designer de moda aprofundou sua vivência e seu olhar para o ambiente e para o cotidiano de seu povo, sua ancestralidade e espiritualidade, que foram fundamentais para sua nova criação.
“Quando passei 25 dias (em outubro deste ano) em São Gabriel da Cachoeira e em Iauaretê (distrito do município), percebi o bom humor que nós indígenas precisamos ter para enfrentar as dificuldades do dia a dia, a luta pelos nossos direitos, que são contínuos”, diz.
Sioduhi também é autor das coleções “Pam?ri 23” e “Dabucuri”, criadas para seu estúdio, e Weá Terra Fértil”, uma coleção conceitual feita sob encomenda para a National Geographic Brasil, lançada como parte das comemorações pelo Dia da Amazônia, em 5 de setembro de 2021.
As peças da Sioduhi Studio podem ser encontradas na loja oficial sioduhi.com . Presencialmente, na Galeria Amazônica em Manaus, e na sede do ISA, em São Gabriel da Cachoeira. Leia a entrevista que ele concedeu à Amazônia Real :
O designer de moda Sioduhi do povo Piratapuya no centro de Manaus mostra sua nova coleção (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Amazônia Real – Como você cria suas peças e quais são suas inspirações?
Sioduhi Lima – Minhas inspirações estão muito ligadas à minha infância e à vivência na comunidade indígena, a transmissões orais sobre criação do mundo demiurgo (criadores), conforme a nossa cosmovisão. Essas transmissões (contações de histórias) aconteciam muito quando viajávamos, eu e minha família, pelo rio Uaupés e Negro, principalmente por parte da minha mãe Maria Otilia, do povo Dessano. E também a inspiração vem do meu tio Ramiro Gonçalves, alfaiate, que ancestralizou em 2017. Por isso, a técnica de alfaiataria é aplicada nas minhas criações. É de onde vêm as narrativas, cores, recortes e acabamentos. Normalmente utilizo tecidos de algodão, viscose e viscolinho, sendo eles certificados e/ou estoque parado das empresas têxteis.
Amazônia Real – Como você descreve a última coleção e quais características você destaca?
Sioduhi – A minha moda é inspirada nas características da ancestralidade. Isso eu trouxe para a nova coleção, “ManiQueen”, que é um pequeno recorte da nossa espiritualidade que a colonização nos fez esquecer. Ela traz nossos próprios deuses da criação. Como eu trabalho muito com acabamento de alfaiataria, todas as peças são modernas e contemporâneas. Busquei fazer um jogo para que as pessoas não criem estereótipos sobre a gente. A coleção “ManioQueen” tem um domínio de cores pastéis e leves, porque quis expressar o futurismo indígena, atemporalidade, leveza e um pouco de bom humor, começando pelo nome da coleção. Quando passei 25 dias, em outubro de 2022, em São Gabriel da Cachoeira e em Iauaretê no Amazonas, percebi o bom humor que nós indígenas precisamos ter para enfrentar as dificuldades do dia a dia, lutar pelos nossos direitos, que são contínuos. E também foi uma forma de destacar a nova tecnologia desenvolvida nesta coleção, o pigmento/corante da casca de mandioca, do projeto Maniocolor. Muitas vezes a gente precisa também de bom humor para enfrentar os desafios que a gente passa diariamente pelas perdas e sem alcance das políticas públicas. A coleção vem trazendo essa mensagem. É um trabalho muito coletivo, de dedicação, com muitas pessoas. Foi um trabalho desafiador.
Amazônia Real – Como começou sua trajetória na moda?
Sioduhi – Trabalhei na área de negócios, em gestão. Foi um bom aprendizado que serviu para cuidar da marca que tenho hoje. Mas esses trabalhos corporativos exigem muito e perdemos a noção do que somos. Quando decidi mudar de área foi em um período difícil. Entre abril e maio de 2020, perdi meu tio Piratapuya, Laureano Cordeiro. Logo em seguida meu amigo Charles Maia Yanomami. Fui para São Paulo nesse mesmo período. Sempre quis trabalhar com moda, mas vi outra realidade lá. A faculdade onde queria estudar (Santa Marcelina) era caríssima, 3 mil reais a mensalidade. Não consegui. Eu tinha feito amizade com uma pessoa no Amazonas e esse amigo me acolheu em São Paulo. Contei meu desejo de estudar moda. E a mãe dele me indicou o curso Técnico em Modelagem pela Escola Técnica de São Paulo. Fiz a prova e passei. A gente entrou na pandemia e tive que parar o curso. Com base no conhecimento autodidata, eu mesmo comecei a fazer minha marca. A criar, a planejar tudo, isso com meu ex-companheiro. Trabalhava no chão mesmo.
Amazônia Real – A partir daí, você foi escolhendo as abordagens de seu trabalho como design de moda. Como surgiu?
Sioduhi – Sim, a partir disso criei outra perspectiva de moda. Uma moda que denuncia, uma moda que conta história. Em “Dabucuri” (uma de suas coleções), mostro a forma como os diferentes povos praticam a exogamia, que é o casamento entre diferentes povos. Isso acontece em minha região. Minha mãe é do povo Dessana, meu pai é Piratapuya. A exogamia está presente no nosso parentesco. Temos também Tariano e Wanano (etnias).
São alianças políticas, arranjos matrimoniais, troca de conhecimento, artefatos, culinária, tudo isso está incluindo nas minhas criações da “Dabucuri”. Trago referências como buriti (fruto), beiju que tem no rio Negro, o açaí verde, o açaí que tem no igapó.
Amazônia Real – O que você quer transmitir em suas coleções, além de peças de roupas?
Sioduhi – Muitas pessoas não conhecem nossas histórias. Eu acabo contando e falando de lugares que também trago do conhecimento dos meus pais, que são idosos. Hoje, por mais que eles sejam resistentes devido à colonização, foram crianças que viveram no internato. Meu pai foi para o campo do seringal, ele foi escravizado. E nesse meio tempo, viveram uma devastação como indígenas. Mesmo assim, todos nós passamos por processo de benzimento…. fazer ritual, primeiro banho, com breu. Temos nossos nomes indígenas, mesmo com essa eurocristianizacão acontecendo. Eu conto essas histórias dentro da moda.
Amazônia Real – De que forma essas histórias são contadas nas coleções?
Siduhi – A “Dabucuri” lancei toda na minha língua, Tukano. Conto de onde vim, quem são meus ancestrais, quem foram meus avôs paternos e maternos. E comecei a contar a inspiração da coleção. Nem sempre se vê uma marca indígena retomando esse lugar de ancestralidade, uma marca que conta história. Mesmo marcas que querem trabalhar com a causa indígena têm erros de narrativa.
Amazônia Real – Onde estas marcas que você se refere erram?
Sioduhi – Isso ocorre porque não estudam, não pesquisam, não ouvem as pessoas que deveriam ouvir. É muito fácil contratar estilistas de São Paulo, por exemplo, e muitos deles contam uma visão equivocada da Amazônia, romantizada. Algumas marcas que dizem se orgulhar da cultura indígena não conseguem contar a história de um povo. Querem apenas fazer a mesma coisa que o colonizador, reproduzindo clichês. ‘Vamos falar de índio’, ‘poder da mata’, ‘alma da floresta’. Eu não acho que isso seja de cultura indígena. Você, como criador, tem que ter consciência de qual povo vai falar, de qual território. Isso sem contar o caráter meramente comercial. Por isso que costumo ir nas redes sociais de marcas famosas que falam de povos indígenas e questiono: ‘quantos indígenas participaram de fato desse processo criativo?’. Quanto pergunto coisas assim, elas me bloqueiam.
Amazônia Real – Bloqueiam nas redes sociais? Pode dar um exemplo?
Sioduhi – Recentemente a revista Amarello fez um projeto chamado ‘homem-peixe’, um filme, que traz um nome parecido com a cosmovisão do meu povo. E fala dos povos indígenas do Alto Rio Negro. Eu fui lá nas redes sociais e disse ‘esse nome está relacionado ao meu povo, Piratapuya, que é gente-peixe’. Fui lá perguntar para saber mais, mas tive a conta bloqueada.
Amazônia Real – O que acha da exploração da imagem dos povos indígenas na moda?
Sioduhi – O mundo da moda é muito elitizado, a gente não tem oportunidades. Nem abertura de revistas de moda especificamente voltada para a gente. A não ser que seja muito midiático, utilizando nossa imagem, e depois fazem a gente sumir de novo. Então, falar da presença indígena na moda vai além da questão de quantos indígenas têm trabalhado em tal projeto. Mas a gente tem que questionar. Quantos indígenas estão tendo de fato oportunidade, principalmente no acesso à educação voltada para a economia criativa nos diversos campos? Muitos artistas são autodidatas. É importante observar isso porque esses espaços são muito elitizados.
Amazônia Real – Como a sua vivência no território indígena ajuda a inspirar e a falar com propriedade nas suas coleções?
Sioduhi – Nasci na comunidade indígena Mariuá, no Médio Uaupés. Nasci indo pra roça com minha mãe, plantando, queimando, fazendo derrubação, brincando de canoa. Pegando camarão de água doce. Sei dos desafios de viajar seis horas, três dias, de ter que arrastar sua canoa.
Amazônia Real – Como você se insere na cena da moda?
Sioduhi – Na minha construção de imagem, estou mais forte em São Paulo e em São Gabriel da Cachoeira. Manaus, onde voltei a morar, ainda tem uma dívida histórica com os povos indígenas. Estou em um recomeço aqui. Depois de quatro anos morando fora..
Amazônia Real – Como você lida com o racismo étnico e o preconceito de gênero?
Sioduhi – Em vários momentos passei por situações críticas. Por racismo étnico. No mercado de trabalho, por exemplo, entre 2013 e 2017. Muita discriminação racial e homofobia. Em São Gabriel senti mais quando estava no ensino médio, onde estudei, entre 2010 a 2012. Esse período era horrível para indígenas que vinham da comunidade. Eu não sabia falar português direito. Era uma homofobia institucional de colegas, professores. Por isso que, como pessoa criativa, da moda, me sinto responsável em falar sobre isso. Desde a minha primeira coleção tenho pessoas diversas: mulheres trans, gays, lésbicas. Sempre penso nessa diversidade, não apenas na moda. Comigo já trabalharam 13 povos indígenas, entre eles Mura, Tariano, PiraTapuya, Tukano, Baré. Tem o trabalho em audiovisual, modelos, assistentes, produção.
Amazônia Real – Com quem você trabalha? Você tem apoio de fomento ou de instituições?
Sioduhi – Houve um momento em que minha marca era só eu, prestando serviço, desenvolvendo coleção. Hoje tenho uma equipe de duas pessoas. Uma brasileira e uma boliviana. Além de duas modelistas, que são da periferia. Tudo o que ganho invisto na minha marca. Não tenho apoio algum (financeiro), para ser sincero. Meu sustento vem da prestação de serviços que faço, de consultoria, de vendas de peças, quando são compradas nas galerias. Não tenho uma instituição que fomenta minha marca. Quem mais compra minhas peças são turistas ou os próprios indígenas.
Amazônia Real – Que lojas podem comercializar suas peças?
Sioduhi – Já mandei peças para o Pará, para o Acre. Mas a minha marca não pode ir para uma loja qualquer. Ela precisa estar aliada a uma causa, uma coerência. Não adianta eu vender numa grande loja de departamento só para as pessoas quererem usar minha imagem. Como designer e criador, preciso entender onde quero estar. Enquanto indígena, a gente precisa trabalhar muito pra não ter erros de narrativas.
Amazônia Real – O que é preciso para a moda indígena ganhar terreno em um espaço tão disputado, desigual e elitizado?
Sioduhi – Quero dizer que nossa cultura indígena é tão dinâmica quanto outra cultura. Muita gente pensa que identidade é estática, ficou no passado. Infelizmente, muitos indígenas ainda partilham dessa cartilha colonial. Pela moda, quero dizer que nós indígenas precisamos recuperar nossa autoestima que foi roubada. Romper esse lugar e estereótipos. Nada é parado, linear. Tudo que está acontecendo é presente, passado e futuro.
Amazônia Real – Você também é um ativista, está conectado a outras causas e pautas. Pode falar a respeito?
Sioduhi – Na minha marca há muitos recortes de luta. A maior é a indígena, mas também fala da lgbtfobia e da equidade de gênero. O primeiro indígena vítima da lgbtfobia foi o Tibira, indígena Tupinambá , morto no porto de São Luís, no século 17. Ele foi colocado dentro de um canhão e partido ao meio, com todos os líderes da aldeia assistindo isso para dizer que a homoafetividade era pecado. Foram os colonizadores que trouxeram isso. Esse foi o primeiro grande ato de apagamento da luta homoafetiva. Essa é uma das pautas que acabo carregando. É uma luta que está na prática. As pessoas que trabalham comigo são sobretudo mulheres. É importante pensar no protagonismo feminino.