Por Estevan Muniz (texto e imagens).
A Escola Comunitária de Magude, na periferia de Maputo, está localizada no bairro Luiz Cabral (conhecido como Drenagem, por estar próximo ao dreno do rio Matola). A região é imprópria para moradia. Ali, não há saneamento básico. O sistema de saúde e a rede de energia também são precários.
Moçambique completa duas décadas de paz neste ano. Após dez anos de Guerra de Independência contra Portugal e mais 16 de guerra civil, o país africano, um dos 20 mais pobres do mundo, com o quarto pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), encontra-se em fase de reconstrução. Durante os últimos anos, seu sistema educacional passou por uma grande expansão: hoje, mais de 90% das crianças estão matriculadas no ensino primário (equivalente ao ensino fundamental brasileiro), segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), e cerca de 12 milhões de crianças estudam em salas apropriadas. Apesar das conquistas, a incapacidade de abrigar de forma eficaz o grande número de estudantes, a insuficiência de professores, a falta de formação de boa parte deles e a ausência de uma política de educação infantil indicam que o cenário ainda é desafiador.
Escola Primária 5 de Fevereiro, na cidade de Matola. Dos 1.300 alunos, 120 têm aulas embaixo de árvores. Não fosse a implantação de um terceiro turno, seriam 550 estudantes à relva. A escola fica a 2 km da parada dos “chapas”, vans superlotadas que funcionam como o meio de transporte oficial de Moçambique
O sistema educacional moçambicano foi altamente afetado pelo contexto político ao longo da história do país. Até a independência em 1975, o ensino formal estava restrito aos portugueses residentes no país, que dispunham de colégios públicos nas grandes cidades, e às escolas de missões católicas e protestantes, poucas para atender a toda a população. Com a Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura do Estado Novo português, Moçambique deixou de ser uma província ultramarina de Portugal, e o governo foi entregue à Frente de Libertação de Moçambique, a Frelimo. O grupo, de caráter marxista, lutara pela libertação por uma década e, então, tinha o desafio de estabelecer um sistema de Educação Básica para uma população composta em 93% por analfabetos.
Não tardou para que, assim terminada uma guerra, começasse outra. Esta desestabilizaria o país de uma vez por todas, prejudicando especificamente a educação. Um grupo de dissidentes da Frelimo, inconformados com um governo socialista, de partido único, e sustentados pelo regime do apartheid da África do Sul e por outros países vizinhos, formou a Resistência Nacional Moçambicana, a Renamo, que travou uma dura guerra civil com o outro partido, encerrada em 1992. “Durante a guerra, quando os integrantes da Renamo invadiam os vilarejos, atacavam primeiro as escolas e assassinavam os professores”, conta Teresa Miguel, pedagoga que integra o núcleo de Educação Pré-Primária do Ministério de Educação. Ela afirma que houve um esforço enorme do Ministério para promover as bases de uma educação primária, mas que as circunstâncias não eram em nada favoráveis. “A guerra destrói famílias; é difícil pensar em educação, quando se está a fugir de armas.” Hoje, Frelimo e Renamo são dois partidos políticos que disputam pacificamente o poder.
Na Escola Primária Completa 19 de Outubro, em Matola, um dos muros estampa a figura de Samora Machel, presidente do país por 11 anos (1975-1986). Considerado um herói nacional, ele liderou a Frelimo, partido que lutou contra Portugal pela independência. Machel instaurou um governo de inspiração socialista, encerrado após sua morte
Nesse contexto, a instituição de um sistema educacional aconteceu a passos lentos. A criação do Sistema Nacional de Educação só aconteceu em 1983. A caminhada pelo acesso à educação gratuita também começou no início da década de 80. Em Moçambique, a oferta do ensino primário é garantida pelo governo. Hoje, estudam 6,5 milhões de alunos no ensino primário em 12 mil escolas. Entretanto, há 8,5 milhões de estudantes matriculados – o país carece de escolas. E boa parte das que existem encontram-se lotadas. Aulas debaixo das árvores são comuns, como verificou a reportagem de Educação. Das sete instituições de ensino visitadas na província de Maputo, onde ficam as cidades de Matola, Manhiça e Maputo, duas tinham turmas acompanhando aulas debaixo de árvores. Segundo a Agência de Informação de Moçambique, 700 mil alunos estudam ao ar livre.
A Escola Comunitária de Magude, em Maputo, existe por conta de uma iniciativa da professora Anita Simeão. “Fiz uma campanha de casa em casa, chamando as crianças para estudar”, conta. Ela começou com encontros embaixo de árvores. A estrutura de caniço da escola foi construída pelos moradores, com o auxílio financeiro de uma ONG irlandesa, a GOAL Moçambique
Uma das escolas (ainda sem nome registrado), localizada na zona rural de Manhiça, tem somente duas turmas estudando dentro de salas de aula. Estas salas são feitas de caniço e estão em condição precária. Só uma delas tem teto. O diretor Fernando João explica que esta é usada pelos alunos da 5ª série: “eles precisam de mais concentração, por conta dos exames finais. Todos os outros são prejudicados.” As outras dez turmas estudam debaixo de árvores. A diretora da Escola Primária 5 de Fevereiro, Sonia Tamele, comenta que tem 120 alunos, neste ano, estudando à relva. “O problema é que, se chove, não tem aula. Debaixo da árvore, há o sol, o vento e, no inverno, o frio.” Não fosse a implantação, no ano passado, de um terceiro turno, o noturno, esse número seria ainda maior.
Essa foi, aliás, uma solução encontrada por algumas escolas para atender a todos os alunos que procuram se matricular. É o caso da Escola Primária 19 de Outubro, que passou a ter turmas à noite. Até 2011, tinha também classes debaixo da árvore, agora recebidas em salas de aula. À noite, estudam somente os alunos mais velhos, por causa da violência urbana. Em todo caso, medidas paliativas parecem não resolver esse problema. Em 2005, o Ministério da Educação desenvolveu o Projecto de Construção Acelerada de Infraestruturas Escolares. Era um programa ambicioso: previa construir seis mil salas de aula por ano, meta que não foi alcançada. Desde 2005 foram construídas apenas quatro mil salas de aula para os alunos de ensino primário. O entrave é a falta de verba, segundo o próprio Ministério.
Bebedouro improvisado na Escola Secundária do Infulene, em Matola. Com mais de mil alunos, o número de estudantes é maior do que o de carteiras em algumas salas, mas nenhum deles tem aulas ao ar livre
Os recursos dos quais o país dispõe também não são suficientes para que haja uma quantidade ideal de professores. Até 2010, contratavam-se 10 mil professores para o ensino primário anualmente, quando o necessário seria entre 15 mil e 20 mil. Neste ano, serão contratados somente 8.500. O vice-ministro da Educação, Augusto Jone Luis, conta que o primeiro passo dado pelo governo da Frelimo na década de 70 foi a criação de centros de formação de professores. Segundo ele, em 1975, dois terços dos professores tinham concluído até a 4ª série. Hoje, formam-se 12 mil anualmente nos centros de formação técnica fomentados pelo Estado, mas nem todos são contratados. “Isso por conta da baixa capacidade financeira do país”, explica.
O curioso é que o nível de formação exigido para quem deseja lecionar é outro: basta ter concluído a 7ª série. Dos seis professores que lecionam na Escola Comunitária de Magude, somente um, o professor Horácio Mutembe, é graduado em pedagogia, o que é raro no país. Geralmente, os poucos cursos de pedagogia são frequentados por quem deseja trabalhar no governo. Uma situação recorrente é encontrada na Escola Secundária do Infulene, em Matola, onde o professor Luiz Carlos Paz, apesar de ser estudante de engenharia, leciona artes para todas as séries secundárias. Muitos de seus colegas têm esse perfil.
Localizada na região rural de Manhiça, a escola acima – ainda sem nome registrado – tem apenas duas salas de aula e somente uma delas possui teto e paredes. A outra tem paredes, mas apenas a metade do teto (centro). As turmas restantes estudam ao ar livre
Para piorar o quadro, os professores precisam lidar com as mais diferentes situações dentro da sala de aula. “Crianças vêm à escola às vezes sem comer e desmaiam”, diz a diretora e professora Percina Tembe, da Escola Primária 19 de Outubro. Além da fome, não é incomum deparar-se com estudantes deitados no chão, com febre, desfalecidos pela malária. Outro grande desafio é reduzir a desistência. Os professores contam que muitos alunos, quando passam dos dez anos, são levados pelos pais para trabalhar nas lavouras, e que outros são desmotivados quando não conseguem passar nas provas finais por não saberem ler. As provas finais da 5ª série exigem um conhecimento de escrita que muitos não chegam a desenvolver, mesmo estudando por cinco anos. De acordo com o Unicef, quase metade das crianças em idade escolar no ensino primário abandonam a escola sem nem mesmo concluir a 5ª série.
Um dos planos do Ministério da Educação para enfrentar o problema da desistência e para aprimorar a qualidade do ensino é concentrar os esforços na educação infantil. Não existe uma política para a etapa – não há sequer creches públicas. As escolinhas (como são conhecidas as creches no país) em atividade são privadas. O chamado ensino pré-primário é gerenciado pelo Ministério de Ação Social e da Mulher, porém o vice-ministro da Educação garante que, neste ano, seu Ministério voltará a assumir as rédeas. “Percebemos que os alunos que chegam ao ensino primário vindos de escolinhas têm um desempenho muito melhor que os demais e dificilmente desistiam.” Em Moçambique, muitas crianças vão ao ensino primário logo que completam seis anos. Ele afirma que as escolinhas são um primeiro ambiente de socialização, capazes de habituar as crianças a um espaço de convivência e aprendizado.
Mas elas sofrem dos mesmos problemas que as escolas regulares: a infraestrutura é parca, há poucas e apertadas salas de aula e um número reduzido de professores. As complicações estruturais e os problemas de pobreza e saúde pública persistem como ecos das guerras que assolaram o sistema educacional do país durante 26 anos. Mas a despeito delas, a educação sobrevive – nem que seja com uma sala de aula improvisada, ao ar livre, debaixo de uma árvore.
Fonte: http://revistaeducacao.uol.com.br/