Por Pedro Alexandre Sanches. A passeata transcorre tranquila, 100% pacífica, sem incidentes. Os manifestantes evoluem pela Esplanada dos Ministérios, em Brasília, portando cartazes corteses e educados, cantando, dançando, festejando. Há muitas famílias, famílias inteiras?—?exceto as crianças, que em sua maioria ficaram em casa, sem engrossar o contingente de algo entre 1.200 e 1.500 pessoas.
Os manifestantes são índios, índios brasileiros (afora alguns hermanos fronteiriços latino-americanos), índias e índios de várias idades, famílias de índi@s. Famílias inteiras, tribos, etnias. Do Norte, do Nordeste, do Centro-Oeste, do Sudeste, do Sul do Brasil. Mas nesta última terça-feira (14/04), não há helicópteros sangrando o céu de Brasília. Nem robocops nem globocops se interessam por monitorar do alto a marcha indígena sobre Brasília.
A timidez da mídia tradicional e o sumiço da Rede Globo na cobertura da 11ª edição da Mobilização Nacional Indígena, promovido pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), causam estranheza aos olhos de quem, como eu, está presente na cena multicolorida. Brasília é uma usina de imagens feéricas que hoje, somadas às pinturas e vestimentas dos habitantes originários do país, seriam dignas de um filme em tecnicolor de Glauber Rocha. Na tela da bola multicolorida que é a Globo, o teatro coletivo ficaria um colosso. Mas aquela que se diz a maior rede tradutora do Brazil não demonstra nutrir qualquer simpatia pelos índios brasileiros.
A Globo, parece, não está aqui. Ou, se está, não se mostra interessada em propagandear o caráter pacífico e familiar da festa, menos ainda fazer carnaval com o farto banquete de imagens oferecido pelo Acampamento Terra Livre no gramadão em frente ao Congresso Nacional.
Os dois dias que separam o dia de hoje da nova jornada de marchas reacionárias, no domingo, 12 de abril, guardam a profundidade de um abismo. Atiram ao chão, por exemplo, a tese do chefão máximo do “jornalismo” da Globo, Ali Kamel, autor de um livro de comédias chamado Não Somos Racistas (em referência aos brazileiros, às brazileiras).
Constrastados os dias 12 e 14, uma entre duas conclusões é inevitável: ou o Brazil é, sim, um país racista, ou a suposta rede brasileira Globo é que o é. Não há outra explicação possível para a discrepância chocante entre a cobertura histérica da mídia “nacional” para as manifestações brancas da direita e o silêncio ensurdecedor diante das coloridas reivindicações d@s não-branc@s que já moravam no Brasil antes que os homens europeus aqui chegassem. Não há explicação plausível para o buraco ético que se abre entre as selfies com policiais militares de domingo e o cerco militar protetor que abraça, de braços bem fechados, o Supremo Tribunal Federal de hoje, “contra” os perigos representados pelos índios.
E quais seriam os tais perigos? A líder indígena Sônia Guajajara, do Maranhão, define três objetivos básicos da mobilização no encontro de apresentação do acampamento à imprensa (o SBT, a TV Brasil e o UOL estão presentes; a Globo se faz invisível). Primeiro objetivo: denunciar a grave situação de ataques sistemáticos aos direitos indígenas. Segundo objetivo: reafirmar os direitos conquistados pela Constituição de 1988 (e até hoje não cumpridos). Terceiro objetivo: sensibilizar a comunidade nacional e internacional para a causa indígena. “Estamos aqui pela 11ª vez para pintar Brasília de urucum”, resume Sônia.
Representando povos indígenas do Nordeste, de Minas Gerais e do Espírito Santo, o líder Sarapó Pankararu traz ao plenário instalado debaixo de uma colorida lona gigante de circo um dos grandes temas de ataque do momento: a Proposta de Emenda à Constituição 215. “Manifestamos nosso repúdio à PEC 215, que tira a responsabilidade de demarcar e homologar terras indígenas do poder executivo e traz para o legislativo”. Eis aí uma causa que, diferentemente da sacrossanta “corrupção”, não sensibiliza (pelo menos não publicamente) a mídia brazileira. “Nós não vamos deixar essa PEC ser aprovada”, promete Pankararu, provocando o balançar de chocalhos e os gritos rituais uníssonos da plenária lotada.
O guarani-kaiowá Anastácio Peralta, do Mato Grosso do Sul, também concentra na denúncia do horror da PEC 215 a tentativa de sensibilizar os jornalistas convidados ao Acampamento Terra Livre. “Nós nunca tivemos valor, empatamos o progresso na mentalidade deles que são colonizadores”, afirma. “A mentalidade do colonizador está até hoje no Brazil. O agronegoçante negoceia nosso país. Não respeita a Constituição de 1988. A PEC 215 não ofende apenas nós, indígenas. Peço a todo brasileiro que seja contra a PEC 215 e a favor dos povos indígenas”. Irmanada com o Congresso Nacional, a Globo, autoproclamado porta-voz do Brazil, não dá indícios de escutar o clamor do curumim-Brasil vocalizado pelo líder guarani-kaiowá.
O cacique Romancil Cretã, do Paraná, toma a fala para criticar frontalmente o preconceito e o racismo fomentados no Sul do país contra os brasileiros não-brancos. À sua voz se somará, na caminhada a seguir rumo ao STF, os cartazes que pedem conjuntamente a devolução de direitos de povos indígenas e remanescentes quilombolas.
Cretã coloca no contexto indígena outro tópico do ataque especulativo liderado no poder legislativo pelo ultra-midiático presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha: “O Brasil está terceirizado para a soja. A monocultura terceirizada da soja só serve para alimentar porcos na Alemanha e gado na Holanda”.
A presidenta Dilma Rousseff não escapa das críticas, notadamente por parte de lideranças indígenas femininas que tomam a palavra após a rodada de diálogo com a imprensa. Como demarcara inicialmente Sônia Guajajara, o Estado brasileiro não está preparado para enfrentar as questões e necessidades dos primeiros entre seus brasileiros e brasileiras. Manifestantes que tomam o microfone sublinham que foi com o voto deles que Dilma subiu pela segunda vez consecutiva aos palácios localizados atrás da Câmara e do Senado.
Muito menos está interessada no assunto a mídia que governa a informação no Brazil. O Jornal Nacional da noite de 14 de abril ignora solenemente o rio de urucum que flui festivo e musical sobre a esplanada no primeiro dia do Acampamento Terra Livre. Nós, #JornalistasLivres que navegamos no rio-chuva de urucum, convidamos a leitora e o leitor de informação a vasculhar na manhã do 15 a imprensa brazileira e encontrar, em suas páginas, uma única entre as tantas falas das lideranças e das famílias não-brancas que povoaram este texto e povoam a capital brasileira (ou brazileira?).
Estuprando Jorge Ben e Baby Consuelo, a fórmula “nenhum dia será dia de índio@” norteia a mídia não-brasileira na semana que antecede o dia 19 de abril, data de aniversário do cantor Roberto Carlos, do político Getúlio Vargas e, por convenção, de tod@s @s índi@s que nos chamamos Brasil.
(O jornalista Pedro Alexandre Sanches viaja a Brasília com passagens aéreas oferecidas pelo Greenpeace; as demais despesas foram custeadas pelo próprio bolso.)
Foto: Reprodução/Opera Mundi
Fonte: Opera Mundi