No dia 29 de setembro, uma cena com pessoas desesperadas, disputando ossos e pelancas, dispensados por um açougue, localizado no bairro da Glória, região central do Rio de Janeiro, chocou as pessoas e viralizou nas redes. Se estima que desde que Bolsonaro assumiu, em janeiro de 2019, até junho último, pelo menos 2 milhões de famílias caíram na situação de extrema pobreza.
Além da pandemia e do governo Bolsonaro que, associados, já mataram, oficialmente, 600 mil pessoas, há uma tempestade perfeita em curso no Brasil, que empurra boa parte da população para a fila do osso. É a combinação de inflação alta, desemprego recorde e ausência de um Auxílio Emergencial que mereça esse nome. Os índices que medem a inflação no varejo estão chegando aos dois dígitos, em 12 meses. O IGP-M (calculado pela Fundação Getúlio Vargas) acumula impressionantes 27% em 12 meses. Essa elevação da inflação se tornou mais aguda, justamente quando o Brasil está próximo dos 10% de sua população em situação de subalimentação. O salário mínimo necessário, calculado pelo DIEESE para uma família de quatro pessoas está em R$ 5.583,90.
A pandemia somente apressou essa situação, mas o tsunami já vinha se armando no horizonte. Nos anos seguintes ao golpe de 2016 todos os indicadores de pobreza e concentração da riqueza deterioram rapidamente. Parte da população, sensível com a dor das “gentes” (aquela que não sai no jornal, diria um grande poeta brasileiro), como ocorreu em outros períodos, voltou a fazer campanha contra a fome, o que é muito louvável e necessário. Mas não resolverá o problema, especialmente quando 10% da população está passando fome. O combate eficaz à fome tem que decorrer de políticas de Estado.
O retorno da fome no Brasil é resultado de um processo. Em 2019, já durante o governo mais subserviente ao imperialismo que o Brasil já teve o desgosto de conhecer, uma resolução do Conselho Nacional de Política Energética colocou fim à política do subsídio do gás de cozinha praticada pela Petrobras. Em meio a um rápido processo de empobrecimento dos trabalhadores, o governo acabou com a possibilidade de muitas famílias adquirirem um bem tão essencial, como o gás. As famílias mais pobres tiveram que optar entre comprar alimentos ou gás, por isso muitas foram obrigadas a começar a usar lenha ou carvão para cozinhar. Segundo o IBGE, em 2019, 14 milhões de famílias usavam lenha ou carvão, um número cerca de 3 milhões a mais do que em 2016.
As políticas decorrentes do golpe de 2016 estão na raiz das causas para o agravamento da fome. Aprovaram a Emenda 95, do teto de gastos, que congelou todos os gastos primários do governo. As políticas sociais e programas de transferência de renda foram sendo esvaziados. Equipamentos de segurança alimentar, como banco de alimentos, foram fechados de forma criminosa. Ao mesmo tempo o combate aos direitos dos pobres e dos trabalhadores se dá em todas as frentes e não cessa nunca. Do golpe para cá são centenas (possivelmente mais de mil), ações destruindo direitos e benefícios dos trabalhadores, sempre conquistados em décadas de sangue, suor e lágrimas.
O espantoso retorno da fome no Brasil, a partir do golpe de 2016, evidencia dois aspectos centrais: 1º) o fracasso do neoliberalismo enquanto política para resolver os problemas da sociedade como um todo. Faz quarenta anos que a burguesia só oferece o neoliberalismo para enfrentar os problemas econômicos, política que destrói as economias dos países e aumenta problemas sociais e a desigualdade; 2º) outra coisa que fica evidente é a crueldade da burguesia brasileira, que faz questão de condenar uma parcela significativa da população, ao martírio da fome.
Não pode haver dúvidas que, em boa parte, trata-se de crueldade. Tanto é verdade que, em dez anos, entre 2003 e 2014, a partir da potência do Estado brasileiro, com um conjunto de políticas articuladas, o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU. O governo atual não fará políticas para enfrentar a pobreza, que ele considera culpa dos próprios pobres e não um problema social, decorrente de políticas públicas concretas. Pelo contrário, como a situação de crise do capital é simplesmente extraordinária, estão transferindo essa conta para as costas dos trabalhadores.
Sempre foi assim, é claro, mas de uns anos para cá, em função do agravamento da crise, o imperialismo não está aceitando na periferia capitalista governos reformistas e nacionalistas. A ordem é botar abaixo governos com essas características, substituindo por lacaios. O próprio plano de reconstrução da economia norte-americana, de Joe Biden, antes de significar o fim do neoliberalismo, revela a profundidade da crise internacional. Enquanto o governo estadunidense entrega cheques nas casas dos trabalhadores norte-americanos desempregados, mantêm, há mais de seis anos, um conjunto de leis e decretos presidenciais contra a Venezuela, o chamado Bloqueio Econômico. As medidas são mais uma das ações dos EUA para tentar interferir no regime político do país e controlar as reservas de petróleo.
Da mesma forma, mantém um bloqueio criminoso contra Cuba As medidas adotadas pelos EUA contra Cuba, assim como a retórica agressiva, levam a que empresas e países no mundo inteiro fiquem temerosos de relacionarem-se com Cuba. Os prejuízos econômicos acumulados pelo bloqueio, em seis décadas de duração, são praticamente incalculáveis (mas o governo cubano tem cálculos sobre isso). Os EUA, ao não se relacionar com Cuba e proibir que países aliados o façam, inviabiliza o desenvolvimento econômico do país vizinho. O bloqueio representa uma violação absoluta e contínua dos direitos humanos de toda a população de Cuba.
Tem que entender que, afinal, eles exploram o mundo todo, para poder manter sua classe trabalhadora sob controle. Para isso eles realizaram recentemente golpes de estado em toda a América Latina, incluindo o do Brasil. Mesmo assim, eles têm grandes contradições internas com 500.000 pessoas em situação de rua (em abrigos ou morando ao relento mesmo). E quase 10% da população está em situação de insegurança alimentar.
Enquanto os brasileiros se chocam ao ver compatriotas disputando ossos e pelancas numa fila, a mídia comercial tenta naturalizar um escândalo envolvendo políticos brasileiros com contas ilegais em paraísos fiscais (Pandora Papers). Envolvidos no escândalo, nada menos que o superministro da Economia, Paulo Guedes e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Esses impolutos senhores, segundo as matérias citadas, ficaram ainda mais ricos neste governo com as operações ilegais. O primeiro é responsável, dentre outras atrocidades, pela privatização da Eletrobrás, a mais importante geradora de energia da América Latina, a preços de banana. O segundo preside um banco central supostamente “independente”, completamente ao serviço do sistema financeiro internacional. Os fatos falam por si só.
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José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.
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