Alô, mamãe!
Estou com muito medo.
A extrema direita poderia governar a França.
UMA SEMANA DEPOIS…
Alô!
Mamãe, estou com muito medo.
A extrema esquerda poderia governar a França.
Como?
Que não há quem me entenda?
Uh, lá, lá!
Nem a minha mãe está me levando a sério.
O PÊNDULO (IMAGINÁRIO) DA POLÍTICA EUROPEIA
É impossível analisar um resultado eleitoral sem analisar também o sistema eleitoral utilizado.
Se, há uma semana, líamos em todas as manchetes que a Europa tinha dado um brusco giro à direita, nestes dias, lemos que o giro brusco foi à esquerda.
E, na verdade, geopoliticamente, se vamos falar de giros, em tais casos, seriam giros de 360º, com a licença de Annalena Baerbock. Atenção!
Em princípios de junho, os resultados eleitorais da Alemanha e França nas eleições europeias foram mencionados como prova da direitização da Europa. Hoje, as eleições gerais no Reino Unido e França são apresentadas midiaticamente como um fenômeno esquerdizante.
Mas, é isso mesmo? Vamos ver.
Os trabalhistas recuperaram a Câmara dos Comuns britânica após 14 anos de domínio conservador. E o fez com uma histórica maioria absolutíssima. Ao passo que a esquerdista Nova Frente Popular francesa se converteu na primeira força na Assembleia Nacional. Algo inédito por quase um século para uma agrupação assim.
Porém, a despeito de quem se alegra e quem se preocupa com esses resultados, assim como os do mês passado, o certo é que não são bem o que parecem ser. Nem eleitoral, nem politicamente!
Vamos começar pelo primeiro.
O sistema eleitoral britânico poderia ser definido de maneira simples com uma canção do grupo sueco Abba: The winner takes it all. Quer dizer, aquele que ganha leva tudo.
O Reino Unido se divide em 650 circunscrições eleitorais e o sistema eleitoral é bem simples. A candidatura que vencer em cada uma dessas circunscrições ocupará um assento na Câmara dos Comuns. Ponto. Não importa se venceu por um voto, por mil, ou por 100 mil. Nem qual foi a distância em relação ao segundo colocado.
Ao contrário de outros sistemas parlamentares, aqui a proporcionalidade não tem nenhum peso e efeitos práticos. É como se se tratassem de 650 mini-eleições presidenciais de um turno só. Então, com frequência, há uma grande desproporcionalidade entre votos e deputados.
Ocorreu em 2019, quando com 44% dos votos o Partido Conservador ficou com 56% dos assentos. E acaba de ocorrer ainda mais com o Partido Trabalhista, que com 34% dos votos obteve 63% dos postos do Parlamento.
O sistema eleitoral francês também tem suas peculiaridades e, na eleição desses dias, foram somadas a suas peculiaridades puramente eleitorais as peculiaridades políticas. O parlamento francês é eleito num sistema de circunscrições igual ao inglês. Também ao estilo de The winner takes it all, ou melhor dizendo, neste caso, Le gagnant reste avec tout.
Mas, atenção, com segundo turno!
Se no primeiro turno de uma circunscrição alguma candidatura supera 50% dos votos, ela obtém o assento automaticamente. Mas, se nenhuma consegue esse objetivo, passam ao segundo turno aquelas formações que tenham obtido pelo menos 12,5% dos votos.
Com esse sistema, a maioria dos assentos costuma ser definida no segundo turno porque, poucas vezes, uma formação supera a metade dos votos no primeiro turno. No segundo turno, não importa o percentual. A formação mais votada obtém o assento.
Em fins de junho, quando se realizou a primeira fase das eleições legislativas, a agrupação de Marine Le Pen obteve a maioria dos votos e a maioria dos assentos outorgados nessa rodada. No entanto, no segundo turno, embora essa agrupação voltou a ter a maioria dos votos, passou a ser a terceira em assentos.
Como se explica isso? Mágica? Fraude? Nada a ver! Política!
No primeiro turno a Reunião Nacional e aliados obtiveram 33% dos votos e 38 assentos. Na frente da esquerdista Nova Frente Popular, com 28% dos votos e 32 assentos. Em terceiro lugar ficou a aliança centrista apoiada pelo presidente Emmanuel Macron com 21% dos votos e apenas 2 assembleístas.
Recordem que no primeiro turno só obtinham a vaga de deputado quem superasse 50% dos votos. Seria no segundo turno onde se decidiriam o grosso dos assembleístas.
Nada mais, nada menos, que 501 das 577 vagas para definir.
E é aqui onde o sistema eleitoral francês e a política do país se entrelaçam e explica o aparente paradoxo de que na rodada definitiva a força mais votada foi a terceira em assentos, e a terceira em votos acabou sendo a mais premiada em assentos.
Ao concluir o primeiro turno, diante da possibilidade de que a extrema direita pudesse alcançar a maioria absoluta da Assembleia e formar o governo, os outros dois grandes partidos na disputa fizeram não um pacto, senão que um anti-pacto, conforme a lógica do sistema de votação francês.
Inicialmente, quase a metade dos múltiplos duelos em segundo turno seria definida justamente entre os três partidos globalmente mais votados no primeiro.
De 501 assentos a se repartir, 250 seriam dirimidos exclusivamente entre Reunião Nacional, Nova Frente Popular e Juntos, a agrupação macronista. Aí estaria a chave do resultado final.
Porém, em 180 desses, digamos, com seu perdão, arranjos eleitorais, ou a aliança de esquerda, ou a de centro, decidiram retirar-se para que o voto se concentrasse na opção não lepenista que tivesse mais chance de ganhar.
Essa estratégia de concentração do voto, ou melhor, do anti-voto, surtiu seu efeito e a Reunião Nacional obteve aproximadamente a metade dos assentos que teria alcançado se não tivesse havido esse acordo entre Juntos e Nova Frente Popular. Ou seja, não é que os franceses passaram em uma semana da direita à esquerda num exercício de bipolaridade eleitoral. Não!
Na verdade, em número e porcentagem de votos, a população francesa votou de maneira quase calcada no primeiro e no segundo turnos. O que ocorreu é que no segundo turno, a maioria dos votantes depositou seus votos pensando mais em suas fobias que em suas preferências.
Até aí a análise eleitoral, que mostra que, tanto os resultados no Reino Unido como na França estão intimamente ligados às peculiaridades de seus respectivos sistemas eleitorais. E, se a gente se deixa levar pelas manchetes, pode cair em engano.
Por sua vez, a análise política desses resultados, sem ser tão demonstrável matematicamente, nem por isso é menos clara.
O desgaste do Partido Conservador britânico após quase 15 anos em Downing Street não começou anteontem, e a mudança de ciclo em Londres tem muito mais de ciclo do que de mudança, o Partido Trabalhista britânico vem a ser uma versão local do Partido Democrata dos Estados Unidos, quer dizer, a cara “progressista” do sistema. E, como a cara boa do sistema, o que mais lhe preocupa é a maquiagem.
O cenário francês é menos previsível porque a Assembleia Nacional ficou bem atomizada. Não há nenhuma agrupação que alcance ao menos uma terceira parte dos assentos. E as calculadoras de coalisões, em sua maioria, soam a água misturada com óleos.
No segundo turno, a aliança de Macron conseguiu se salvar do naufrágio total já que, paradoxalmente ou não, o êxito de Reunião Nacional no primeiro turno e o pacto eleitoral anti-lepenista lhe serviram para deixá-lo meio flotando e, agora, tentar vender-se como a alternativa sensata entre dois extremos, reais ou imaginários, mas, sem cuja existência, nem a Brigitte votaria em Emmanuel.
E assim o Ocidente europeu se mantém aferrado a um modelo em que a grande maioria dos eleitores se divide entre os que creem estar jogando um papel transcendental numa batalha desigual contra a extrema direita e aqueles que sentem que estão evitando a apocalíptica chegada da extrema esquerda ao poder. Uma sensação que é fomentada pelos poderes fáticos, tanto partidários como financeiros, ou midiáticos e até eleitorais, para que a população sinta que a política europeia se comporta como um vertiginoso pêndulo.
Quando o certo é que, para além das aparências, trata-se de um pêndulo velho, oxidado e, sobretudo, projetado para mover-se o menos possível.
Tradução ao português e legendas: JAIR DE SOUZA