Por João Peres, Tatiana Merlino, para The Intercept.
UM HOMEM BRANCO vestindo um cocar amarelo e uma mulher branca com um cinto indígena dançam, em roda, com integrantes da etnia Pareci. É 13 de fevereiro de 2019, e eles participam da festa da colheita na Terra Indígena Utiariti, situada na cidade de Campo Novo dos Parecis, a 397 quilômetros de Cuiabá, em Mato Grosso. O homem é o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. E a mulher, a então ministra da Agricultura, Tereza Cristina.
Junto a eles, estavam o governador do estado, Mauro Mendes, e o então diretor de Proteção Ambiental do Ibama, major Olivaldi Azevedo. O evento reuniu indígenas de 70 aldeias das cinco regiões do país, mas tanto a colheita de soja quanto a participação dos políticos na festa foram ilegais.
Menos de um ano antes, em junho de 2018, cinco terras indígenas das etnias Pareci, Manoki e Nambikwara haviam sido embargadas pelo Ibama. Os indígenas foram multados por desmatamento sem licenciamento ambiental, plantio de soja transgênica na área indígena e arrendamento de terras para não-indígenas. O órgão ambiental aplicou ainda uma multa de R$ 2,7 milhões contra produtores rurais e associações indígenas.
Na festa da colheita, portanto, a área seguia interditada. Os indígenas descumpriram o embargo. Os ministros, o governador e o próprio funcionário do Ibama não respeitaram a decisão do órgão federal. Com isso, de acordo com o artigo 81 do Decreto 6.514, podem ser autuados por não cumprirem o embargo e ainda ser multados por prevaricação – ou seja, por terem deixado de cumprir com os deveres de um servidor público.
“Nessa condição, avalio que pode estar caracterizada improbidade administrativa”, afirma Suely Araújo, que era presidente do Ibama à época em que a multa e os embargos foram aplicados. No entanto, “esta análise cabe ao Ministério Público Federal e ao Judiciário”, diz a especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima.
Alerta de área embargada
Dias antes da cerimônia, a então superintendente do Ibama no Mato Grosso, Lívia Karina Passos Martins, recebeu um convite do governador para participar do encontro. Em resposta, a servidora enviou um ofício à presidência do Ibama e à Diretoria de Proteção Ambiental, o Dipro, responsável por fiscalizações e que então tinha à frente o major Olivaldi Azevedo.
No texto, ela alertou para o fato de que a terra indígena onde ocorreu o ato era a mesma que havia sido interditada e fiscalizada pelo próprio Dipro, em 2018. E afirmou desconhecer qualquer decisão judicial que teria suspendido a decisão. Assim, já que a área seguia embargada, “os grãos a serem colhidos neste 1º encontro teriam sido produzidos sobre área objeto de embargo, infringindo o Decreto 6.514/2008 por descumprimento”, escreveu.
A servidora pediu que se verificasse a existência de alguma ação judicial que tivesse suspendido a ação e, não havendo, solicitava orientação sobre os procedimentos administrativos a serem tomados, inclusive quanto aos grãos colhidos ilegalmente. E, por fim, sugeriu que se analisasse a possibilidade de comunicar o fato ao Ministério Público Federal, o MPF, para que fossem tomadas as devidas providências. O mesmo decreto 6.514 proíbe adquirir e comercializar o que foi produzido em área interditada.
Martins não teve retorno. Sete meses depois, em 26 setembro, o então presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, desembargou todas as áreas multadas. Três servidores do Ibama nos falaram que a medida foi vista como uma “canetada” para acomodar os interesses de Jair Bolsonaro, que sempre foi um entusiasta da abertura das terras indígenas para exploração agrícola por não-indígenas.
Desde o início do governo, a área foi alvo de pressão dos ruralistas. Durante sua gestão, Bim esteve envolvido em irregularidades e chegou a ser afastado do cargo durante investigações da Polícia Federal que apuraram supostos favorecimentos do Ibama à extração ilegal e exportação de madeira nacional.
Nove meses após a festa, os indígenas das três etnias assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ibama, a Funai e o MPF para produção agrícola nas terras indígenas Rio Formoso, Pareci, Utiariti, Tirecatinga e Irantxe, em Mato Grosso, sem a participação de não-indígenas e sem transgênicos.
Por meio da Lei de Acesso à Informação, em dezembro passado, solicitamos ao Ibama informações sobre as ações fiscalizatórias para o monitoramento da área que havia sido embargada e sobre o destino da soja produzida nesse período. A resposta foi: “Não consta na base de dados a realização de novas ações fiscalizatórias nas referidas áreas após o desembargo.”
Perguntamos ao Ibama por qual motivo o então diretor do Dipro, Olivaldi Azevedo, participou da festa da colheita se sabia que a área estava embargada. Também perguntamos ao órgão se acionou o MPF após o despacho da superintendente do Mato Grosso, e se houve um acompanhamento do destino da soja colhida ilegalmente. Por meio de sua assessoria, o Ibama disse que “não foi localizado nenhum comunicado direcionado ao MPF sobre o assunto mencionado” e que “a presença no evento foi articulada por gestores do Ministério do Meio Ambiente (MMA) que integraram a gestão anterior.”
O Ibama não respondeu à pergunta sobre a presença de Olivaldi na festa, mas disse que “não houve participação de nenhum servidor de carreira do Ibama” no evento. O diretor do Dipro, que antes de assumir o cargo atuava como subcomandante da Polícia Militar Ambiental de São José do Rio Preto (SP), não era servidor de carreira do Ibama.
Em abril de 2020, Olivaldi foi exonerado após uma operação contra garimpos no Pará. De acordo com servidores do Ibama, Olivaldi criava dificuldades em ações de fiscalização. O major havia assumido o cargo em janeiro de 2019.
Em junho de 2021, a Polícia Federal cumpriu um mandado de busca e apreensão na casa de Azevedo durante a Operação Akuanduba, que apurava exportação ilegal de madeira do Brasil para os Estados Unidos e a Europa.
Outros casos
A conduta da direção do Ibama em relação aos Pareci se assemelha a outros casos envolvendo povos indígenas durante o governo Bolsonaro. Em março de 2022, O Joio e O Trigo revelou que a área técnica do instituto foi atropelada pela direção ao contestar a transferência de licenciamento ambiental de uma ferrovia que afeta duas terras do povo Bororo, também em Mato Grosso.
Na ocasião, a Diretoria de Licenciamento resolveu atropelar sete pareceres técnicos que questionavam a capacidade da Secretaria Estadual de Meio Ambiente em analisar o pedido da Rumo, maior operadora logística do país, para a realização do empreendimento.
No caso dos Xavante, foi a área técnica da Funai que ficou a ver navios. A cúpula da fundação, dominada por militares e pelo delegado federal Marcelo Xavier, blindou o projeto conhecido como Agro Xavante, que o bolsonarismo também utilizou para fins de propaganda.
A reportagem procurou os ex-ministros Ricardo Salles e Tereza Cristina, e o governador de Mato Grosso, Mauro Mendes, mas não houve retorno até o fechamento deste texto.