Por Luis Barrucho.
“O Ministério da Saúde informa que as regras estabelecidas na Portaria de Consolidação GM/MS n° 5, de 28/09/2016, que substitui a portaria n° 158/2016, visam, sobretudo, a segurança transfusional, permanecendo inalteradas”, diz a nota enviada à BBC News Brasil pelo órgão.
Pelas regras vigentes, determinadas por essa portaria do Ministério da Saúde e por uma resolução da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa), homens que tiveram relações sexuais com outros homens nos 12 meses anteriores à doação não podem doar sangue.
E, por causa dessas normas, esse grupo também não pode doar plasma para pacientes infectados com covid-19, um novo tipo de tratamento que pode dar esperança de sobrevida aos doentes mais críticos.
O veto se baseia principalmente na ideia de que há maior incidência de HIV entre esses grupos, o que aumentaria o risco de infecção ao receptor do sangue doado.
Outros países do mundo mantêm o mesmo tipo de proibição que o Brasil, como Nova Zêlandia e Finlândia.
No entanto, em alguns, foi iniciado um movimento para flexibilizar as regras após registrarem uma queda acentuada nos estoques de sangue por causa das medidas de isolamento social decretadas para combater o coronavírus.
No Brasil, por exemplo, somente no Hemocentro da Unicamp, em Campinas, no interior de São Paulo, as doações de sangue já caíram 25% e os estoques estão em nível de alerta. Situação semelhante é relatada por hemocentros de todo o país.
Um dos países a mudar as normas foi os Estados Unidos, onde o veto sempre dividiu opiniões, despertando defesas acaloradas de ambos os lados.
Em uma decisão urgente e inédita, o FDA (Food and Drugs Administration, a Anvisa americana) reduziu de 12 para três meses o período em que homens que tiveram relações sexuais com outros homens são considerados inaptos à doação de sangue.
Segundo o órgão, o anúncio foi feito após estudos recentes e dados epidemiológicos concluírem que os critérios de eligibilidade podem ser modificados sem impactar a segurança da doação de sangue. As novas diretrizes vão permanecer em vigor mesmo depois do fim da pandemia.
“Manter um suprimento adequado de sangue é vital para a saúde pública. Doadores de sangue ajudam pacientes de todas as idades – vítimas de acidentes e queimaduras, pacientes submetidos a cirurgias cardíacas e transplantes de órgãos e aqueles que lutam contra o câncer e outras condições com risco de vida”, afirmou o FDA em seu site.
Outros grupos que estavam impedidos de doar sangue por 12 meses, como mulheres que tiveram relações sexuais com homens gays ou bissexuais e indivíduos que fizeram tatuagens ou piercings no ano anterior à doação, também tiveram essa janela de doação encurtada para três meses.
Em 2015, os Estados Unidos já haviam suspendido uma proibição vitalícia para homens gays e bissexuais de doarem sangue, estabelecida durante a epidemia de Aids nos anos 80. Naquele ano, o tempo de espera para a doação desse grupo foi determinado em 12 meses após a relação sexual com indivíduos do mesmo sexo.
‘Sem discriminação’
Segundo o Ministério da Saúde, as diretrizes brasileiras seguem as recomendações da OMS (Organização Mundial da Saúde). Segundo a pasta, não há discriminação por orientação sexual e a proibição se sustenta em dados epidemiológicos nacionais.
De fato, o manual de seleção de doadores da OMS inclui homossexuais masculinos sexualmente ativos entre os perfis de alto risco pois têm “19,3 vezes mais chances de terem o vírus HIV”, dando respaldo ao veto total como política padrão.
Mas, em 2018, a organização reconheceu que suas diretrizes sobre os critérios de doação de sangue estão desatualizadas.
Em nota enviada à BBC News Brasil, a Anvisa afirmou que “este impedimento está baseado em dados concretos que mostra que entre ‘homens que fazem sexo com outros homens’ o risco é muito superior a outros recortes populacionais”.
“A norma tem uma vedação temporária para homens que fazem sexo com outros homens. É importante destacar que a norma é focada em uma prática e não na identidade sexual da pessoa”, diz o comunicado.
“Ou seja, os critérios de seleção de doador são baseados em epidemiologia e na prevenção de riscos mais elevados.”
Defensores da norma alegam que ela não é “discriminatória”, uma vez que a orientação sexual de um indivíduo nunca foi considerada como critério de exclusão para a doação de sangue e, sim, se o doador do sexo masculino teve relação sexual com outro homem no período de 12 meses anteriores à contribuição.
Por esse entendimento, gays continuam a poder doar desde que cumpram os pré-requisitos da doação.
Além disso, eles reforçam que as diretrizes se baseiam em critérios estritamente epidemiológicos, ou seja, no grau de incidência de doenças infecciosas, como o HIV, em alguns segmentos da população.
Destacam também que outros grupos também são impedidos de doar, como trabalhadores do sexo (independentemente do gênero e da orientação sexual) e pessoas que fizeram tatuagens ou maquiagem definitiva – nesse caso, também por 12 meses.
Entre os grupos que não podem doar sangue em nenhuma hipótese estão pessoas que já tenham tido hepatite após os 10 anos de idade, doença de Chagas, malária e câncer, incluindo leucemia.
A lista completa de quem pode ou não pode doar está neste link: http://www.prosangue.sp.gov.br/artigos/quem_nao_pode_doar.html
Outro lado
No entanto, ativistas e especialistas dizem que, na prática, as regras atuais impossibilitam que gays doem sangue, mesmo aqueles que tenham parceiro fixo nos 12 meses anteriores à doação e, portanto, corram menos risco de contrair HIV.
Nesse sentido, argumentam que se trata, sim, de uma medida “discriminatória”.
Eles destacam que pelo menos outros 15 países não fazem distinção ou estabelecem critérios específicos de exclusão de homens que mantêm relações sexuais com outros homens, como Argentina, Chile, Peru, Espanha e Itália.
Além disso, lembram que esse tempo de espera (12 meses) é desnecessário, pois os exames de sangue modernos podem detectar o HIV.
É importante destacar, contudo, que exames de sangue podem permanecer negativos por cerca de nove dias depois que alguém foi infectado pelo HIV, a chamada “janela imunológica”.
Os críticos acrescentam ainda que a realidade brasileira põe em xeque as normas em vigor.
Um estudo realizado pelo sociólogo Júlio Jacobo Waiselfisz, com base em dados do Ministério da Saúde, mostrou que heterossexuais adultos representavam a maior parcela nas novas notificações de infecção pelo vírus HIV em 2012.
Naquele ano, 67,5% dos casos informados pela rede de saúde pertenciam ao grupo de heterossexuais, sendo a maioria formada por mulheres, com 58,2%. O levantamento também mostrou que a maior incidência de contaminação estava na faixa de 30 a 49 anos, incluindo héteros e homossexuais.
Ainda assim, em 2018, uma pesquisa encomendada pelo Ministério da Saúde e feita em 12 cidades brasileiras mostrou que um a cada quatro homens que fazem sexo com homens no município de São Paulo tinha HIV.
Inconstitucionalidade
No mês passado, o STF (Supremo Tribunal Federal) retomou o julgamento de uma ação contra a restrição à doação de sangue por gays. Mas o julgamento, que teve início em 2017, acabou adiado e não tem previsão para voltar à pauta.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5543, ajuizada em 2016 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), pedia a suspensão imediata das normas.
O ministro Edson Fachin é o relator da ação. Em 2017, o julgamento dela foi interrompido no plenário quando outro ministro, Gilmar Mendes, pediu vista.
Na ação, o PSB diz que o veto reflete “o absurdo tratamento discriminatório por parte do Poder Público em função da orientação sexual, o que ofende a dignidade dos envolvidos e retira-lhes a possibilidade de exercer a solidariedade humana com a doação sanguínea”.
A suspensão das regras já havia sido defendida, também em 2017, pela Procuradoria-Geral da República em um parecer.
Segundo Rodrigo Janot, então procurador-geral, a proibição se baseia no fato de que a transmissão do vírus HIV é mais frequente na prática do sexo anal. Mas ressaltou que a prática não está limitada a homens homossexuais, sendo também comum na vida de pessoas com outras orientações sexuais.
“No caso de homens heterossexuais, basta para sua habilitação que tenham feito sexo com parceira fixa nos 12 meses anteriores à doação, ainda que sem uso de preservativos”, afirmou Janot no parecer.
Estoques baixos
Polêmicas à parte, bancos de sangue de todo o país vem fazendo uma convocatória a doadores, em meio à possibilidade cada vez mais real de os estoques atingirem níveis críticos.
Não há evidência científica de que o novo coronavírus possa ser transmitido através de uma transfusão sanguínea.
“As pessoas devem continuar doando sangue uma vez que há outros pacientes que precisam de bolsas, como vítimas de acidente de trânsito. As doações não podem parar”, diz à BBC News Brasil Silvano Wendel, diretor do Banco de Sangue do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo.