Por Marcella Fernandes.
Após o presidente Jair Bolsonaro editar, neste ano, oito decretos que ampliam o porte e a posse de armas de fogo, representante do Ministério da Justiça afirmou, nesta terça-feira (15), em audiência pública na Comissão da Mulher na Câmara, que não há evidências de que a liberação de armas aumente a violência contra mulheres. A Câmara dos Deputados pode votar nesta semana projeto de lei que afrouxa as regras do Estatuto do Desarmamento.
“No que tange à flexibilização do porte de arma de fogo, não há um dado concreto para se afirmar que ele interferirá diretamente no feminicídio ou no enfrentamento da violência contra a mulher”, disse Thaylize Rodrigues Orsi, da Coordenação de Legislação em Segurança Pública da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça.
O substitutivo do deputado Alexandre Leite (DEM-SP) amplia os direitos dos atiradores esportivos e caçadores e autoriza a regularização da posse de armas de fogo sem comprovação de capacidade técnica, laudo psicológico ou negativa de antecedentes criminais. Se aprovado, o texto segue para o Senado. Deputados da oposição tentam adiar a votação ou alterar o texto para aumentar o controle de armas e de munições.
A integrante do ministério chefiado por Sérgio Moro citou dados que mostram que, em geral, os feminicídios (homicídios contra mulheres por sua condição de gênero) são cometidos com armas brancas e não armas de fogo.
“Feminicídio se caracteriza, na maioria dos casos, pela raiva e sentimento de vingança. Por esse motivo, as mortes praticadas nesse contexto são personalizadas e demonstram existência de afinidade entre o autor do fato e a vítima mulher”, afirmou.
De acordo com Orsi, dados da Secretaria de Segurança do Distrito Federal mostram que, em 2017, 50% dos feminicídios foram cometidos com armas brancas e 28% com armas de fogo. Já em 2018, foram 37% por armas brancas e 22% por arma de fogo. E em 2019, até agora, 31% com armas brancas e 15% com armas de fogo. Já no estado de São Paulo, em 2018, 58% dos casos de feminicídio foram praticados com faca ou outra arma branca, enquanto 17%, foram praticados com armas de fogo.
Ainda não há informações nacionais sobre o tema. O Ministério da Justiça sabe apenas o número de homicídios contra mulheres, mas não têm dados específicos de feminicídios e como esse tipo de crime foi cometido. A pasta está com um estudo em andamento para resolver essa lacuna.
Um grupo de trabalho sobre violência doméstica dentro do Ministério também estuda a implementação de uma análise de procedimentos penais após o fim da investigação policial e a padronização de procedimentos dentro do sistema de proteção à mulher no País. Segundo Oris, haverá avanços “em breve”.
Sobre o impacto de armas na violência contra mulheres, a integrante da Secretaria Nacional de Segurança Pública afirmou que os dados coletados pelo Mapa da Violência mostram que não houve redução do número de homicídios desde a implementação do Estatuto do Desarmamento, em 2003.
Porém, o Mapa da Violência 2016 mostra que o Estatuto do Desarmamento foi responsável por poupar 160.036 vidas desde 2003. Entre 1993 e 2003 os homicídios com arma de fogo cresceram 7,8% ao ano, até atingir 36.115 mortes. Seguindo esta progressão, em 2012, o número deveria ser de 71.118 vítimas fatais de disparos, mas foram registradas 40.077 mortes.
Orsi também citou estudo da ONU (Organização das Nações Unidas) que, segundo ela, “demonstra que o simples desarmar não é a solução dos nossos problemas”.
“Na própria ONU, um estudo recente no âmbito global reconheceu que não se pode reconhecer uma relação direta entre os acessos legais da população à arma de fogo e os índices de homicídios pois as armas que hoje matam são aquelas do crime organizado. Não aquelas registradas nem aquelas em cumprimento aos requisitos legais”, disse.
Porém, estudo mais recente da ONU sobre o tema, divulgado em setembro, em Genebra, vai na direção contrária do discurso e medidas do governo Jair Bolsonaro sobre armas. O levantamento aponta que o acesso a armas em mãos de civis gera mais violência e abusos de direitos humanos.
Em agosto, o ministro Sérgio Moro afirmou que “os homens se sentem intimidados”, em cerimônia de lançamento do Pacto pela Implementação de Políticas Públicas de Prevenção e Combate à Violência contra Mulheres.
“Talvez nós, homens, nos sintamos intimidados pelo crescente papel da mulher em nossa sociedade. Por conta disso, parte de nós recorre, infelizmente, à violência física ou moral para afirmar uma pretensa superioridade que não mais existe”, disse, à epoca.
Armas de fogo e feminicídio
Na contramão do entendimento do Ministério da Justiça, especialistas em violência contra mulheres entendem que o Brasil pode piorar seus indicadores de feminicídio com a flexibilização do uso de armas de fogo. Somos o quinto país que mais mata mulheres no mundo, de acordo com números da OMS (Organização Mundial da Saúde).
Dados analisados por especialistas para o HuffPost Brasil em janeiro, após a edição do primeiro decreto presidencial sobre o tema, mostram que a liberação de armamentos pode aumentar a vulnerabilidade em casos de violência doméstica e que, dificilmente, as mulheres conseguirão se defender de agressões.
Por outro lado, o perfil das vítimas e dos agressores e as fragilidades da rede de assistência, incluindo falhas no atendimento nas delegacias e na fiscalização de medidas protetivas e número insuficiente de casas de abrigo, são evidências de que a liberação de armas não irá ser efetiva para que as mulheres usem esse mecanismo para se defender desse tipo de agressão.
De acordo com o “Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil”, houve um aumento da violência contra a mulher nos últimos anos. Foram 21% de crescimento de mortes em uma década até chegar a 13 homicídios femininos diários em 2013. O patamar coloca o Brasil com uma taxa de 4,8 homicídios por cada 100 mil mulheres.
Embora homens sejam mais frequentemente vítimas de armas de fogo do que mulheres, esse tipo de arma é o meio mais usado nos 4.762 homicídios de brasileiras registrados em 2013, segundo o estudo. Foram 2.323 casos, o equivalente a 48,8%, seguido por objeto cortante/penetrante (25,3%), objeto contundente (8%), estrangulamento/sufocação (6,1%) e outros (11%).
Como não se sabe a motivação de todos os registros, não é possível dizer que todos são casos de feminicídio – homicídio de mulheres cometido em razão do gênero, ou seja, quando a vítima é morta por ser mulher. O delito passou a ser tipificado desde 2015, quando a pena para esse tipo de agressão passou a ser maior do que a do homicídio comum.
As pouco mais de 2.300 mortes de mulheres por armas de fogo e o percentual em torno de 49%, considerando o total de registros, se mantiveram estáveis entre 2012 e 2016, segundo dados do Datasus.
Já os casos em que esses óbitos ocorreram em domicílio, o que pode indicar violência doméstica, oscilaram neste período. Em 2016, as 560 brasileiras mortas por armas em casa representavam 40,2% das mortes em domicílio.
Violência doméstica no Brasil
O feminicídio é considerado a última etapa do ciclo da violência. Em geral, ocorre após a mulher sofrer outros tipos de agressões. Por esse motivo, outros indicadores podem ser impactados com a flexibilização de armas.
De acordo com o Relógios da Violência, do Instituto Maria da Penha, a cada 16,6 segundos uma mulher é vítima de ameaça com faca ou arma de fogo no Brasil. E a cada 2 minutos, uma mulher é vítima de arma de fogo.
Na avaliação de especialistas em segurança pública, estudos apontam que a restrição é a política pública mais adequada para evitar mortes. O “Manifesto dos pesquisadores contra a revogação do Estatuto do Desarmamento” mostra que, em diversos países, a proliferação da arma de fogo aumenta o risco de feminicídios e outros tipos de mortes. O documento é assinado por 57 especialistas brasileiros e estrangeiros.
Já um estudo de 2014 do pesquisador Daniel Cerqueira, um dos coordenadores do Atlas da violência, publicado pelo Ipea (Instituto de Pesquisas Econômica Aplicada), mostrou evidências de que cada 1% no aumento da proliferação de armas de fogo faz com que a taxa de homicídio aumente em torno de 2% nas cidades.
Armas podem evitar estupros?
Sobre os crimes sexuais, os dados mostram que, em geral, o agressor é uma pessoa conhecida da vítima, diferente da imagem de um “estuprador desconhecido em um beco escuro” citada por defensores do armamento.
“No geral, 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima, o que indica que o principal inimigo está dentro de casa e que a violência nasce dentro dos lares”, de acordo com o estudo “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, publicado pelo Ipea em 2014.
Segundo o Ipea, no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil e apenas 10% desses casos chegam ao conhecimento da polícia, devido ao estigma do crime. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2017 foram registrados 60.018 estupros no Brasil.
Nesse universo, a maior parte das vítimas são menores de idade e, portanto, não poderiam ter armas. De acordo com o Atlas da Violência 2018, 68% das vítimas de estupro são menores de idade, sendo 50,9% meninas menores de 13 anos e 27% entre 14 e 17 anos.
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