Era uma vez uma mãe de 21 anos. Ela já tinha um filho, Helder, de um ano e quinze dias, quando, em 1955 eu nasci. Milena era uma mulher magra. Mamei por dez meses e fiz emagrecer ainda mais essa mãe. Logo depois ela se refez. Tinha pele morena clara, cabelos pretos lisos e compridos e belos olhos azuis cinzentos. Muito bonita, desconhecia isso. Fazia o estilo simples, despojado e modesto. Gostava de cantar, e quando estava na máquina de costura, na qual fazia roupas para os dois filhos pequenos, se punha a entoar canções que eu só ouvi na voz dela. Andava de bicicleta, tecia tricô, bordava, fazia cascorão, marshmallow, requeijão derretido, assava frango com recheio de farofa, levava os filhos pra casa da avó, e subia no telhado para salvar a mim, então com três anos, que tinha subido pela escada de pedreiro e não conseguia descer. Era uma menina cuidando de dois meninos. A casa era bem musical, pois meu pai, Alcides, de 24 anos chegava do trabalho – era contador – colocando disco na radiola. Música indicava a presença dele na casa.
Milena usava batom vermelho, vestido godê de cintura fina, cuidava de nós e da casa, mas sempre teve quem a ajudasse no serviço. Uma vez chegou ofegante com umas ampolas. Eram vacinas contra varíola. Quebrou a pontinha, raspou o vidro na pele do nosso braço e nos disse que estávamos vacinados. Era obcecada pela descoberta de algo que evitasse a poliomielite. A primeira chamou-se Sabin. Uma vez apavorou-se, quando eu coloquei um grão de feijão no nariz, e outra quando eu peguei piolho na escola. A casa era sossegada, mesmo próxima à linha do trem, exceto quando eu tirava o ebulidor de dentro da água e o apontava como um lança-chamas, ou quando ligava o ferro-elétrico e o colocava escondido debaixo de uma trouxa de roupas limpas, até as labaredas se levantarem. Mesmo assim, levei poucas chineladas na vida.
Na parte da tarde, filhos asseados, íamos a pé passear. Logo cedo, aos 4 anos, frequentávamos o jardim da infância, pouco depois a Praça de Esportes para aprender a nadar, restaurante quase todas as noites (meu prato predileto era salada mista) e conservatório de música (teoria musical e violão). Cheia de vitalidade, e esquecida de que era mãe de dois meninos, subiu numa mangueira, o galho se rompeu e ela caiu, quebrando o osso púbico, a parte anterior da bacia. Não fez tratamento, e quando foi ter o terceiro filho, não tinha como, pois o osso de um lado estava justaposto com o outro, reduzindo o espaço. A criança não conseguiu nascer. Durante essa gravidez frustrada ela tinha uma barriga imensa e um vestido branco de bolas pretas. Eu tinha seis anos.
Dois anos após, fez pessoalmente todo o enxoval da minha irmã, bordando as delicadas peças com meadas de linha Varicor. Tinha então vinte e nove anos. Foi quando nasceu Carla, de cesariana, seguida de ligação de trompas, exigida pelo meu avô Petronilho. Milena era uma mãe paciente, cuidadosa, sabia de muitas coisas, até mesmo Matemática e gostava de ensinar os filhos. Era culta, algo rebelde, e entre dentes se rebelava quanto às verdades, especialmente as políticas defendidas pelo seu marido. Tinha argumentação convincente, amplos conhecimentos, mas não gostava de falar em público, e até mesmo se encolhia quando pessoas próximas precisavam falar. Reservada, ia pouco à missa, mas rezava em casa e tinha santos e anjos em seu quarto, assim como um missal.
Havia poucos prédios na cidade e morávamos num deles, num pequeno apartamento no centro, que, sem manutenção, logo ficou decadente. Meu pai tinha deixado o emprego de contador para abrir uma loja de confecções que durou sete anos e foi à falência. Depois voltou para a contabilidade de empresas de automóveis. Foi quando Milena foi estudar Medicina. Esforçada, grudada com um livro, deu no que deu. Foi a primeira aluna da sua turma, que tinha trinta e oito homens e apenas duas mulheres. Ambas fizeram ginecologia e obstetrícia. Outra coisa que a incomodava era escrever relatórios médicos. A não ser em provas, evitava ser avaliada. Revirou sua vida e a nossa, fazendo-nos subir. Mudou-se para uma boa casa, e lá foram com ela Du e Kátia.
Contando assim, parece fácil. Desafios, assuntos difíceis, o medo natural do desconhecido não são nada diante das provações que o destino apronta. A vida a dois para minha mãe tinha anexos de infidelidade, gastos com bebidas, e opressão pelo silêncio. Após a formatura, ela manteve o casamento por dez anos, mas enfim, acabou. Aos cinquenta anos, ela estava separada, para se dedicar à Medicina e aos quatro netos: Heldinho, Fernando, Milena Tereza e Maria Fernanda.
Adorava viajar, comer coisas diferentes e mais ainda, contar as viagens e os sabores de quase todo o Brasil, Europa, América do Sul e Caribe, aonde pôde passear e ser feliz. Trabalhou na Medicina por vinte e oito anos. Fazia partos com paixão e dedicação totais. Dois meses antes de morrer, fez um curso de gravidez de alto-risco em Belo Horizonte. Uma semana completamente dedicada aos estudos, num surpreendente entusiasmo aos sessenta e oito anos de idade. Não sabemos quando as nossas células saem do controle, multiplicam-se desordenadamente e matam o hospedeiro. Foi o que lhe aconteceu.
Neste ano de 2014, em que o Dia das Mães cai no dia do seu aniversário de oitenta anos, rendo-lhe honras de fã. Minha mãe partiu há onze anos, três meses e catorze dias. Para recordar a corajosa mulher que foi, me visto com simplicidade e amor, duas características dela, a primeira a chegar, onde houvesse um problema. Largo dos espinhos, agarro-me às flores, coloco uma música e lhe faço uma homenagem suave e delicada. Por ela, consigo ser quase meiga, macia e doce. E que o mundo saiba, mais uma vez, o quanto eu amo esta grande Milena.
06/05/14