Por Alexandre Putti.
Quando e se sair do papel, o programa habitacional, em seu novo formato, vai se chamar ‘Casa Brasil’
Desempregada desde 2012, Cláudia Rosane Garcez ainda sonha com um imóvel próprio. Metade dos mil reais que ganha com a venda de roupas pela internet ou de balas na porta do metrô cobre o aluguel da casa de dois cômodos em Cidade Tiradentes, no extremo leste de São Paulo. “Não sou consumista, por isso fome não passo”, afirma. Há dois anos ela espera na fila do Minha Casa Minha Vida. Como sua renda está classificada na faixa 1 do programa, para famílias que recebem até 1,8 mil reais por mês, a ambulante estaria apta a um subsídio de 90% no valor da habitação – os 10% restantes, pagaria em suaves prestações.
Estaria. As mudanças anunciadas pelo governo no programa colocam em risco o sonho de Cláudia e de milhares de outras famílias. O Ministério do Desenvolvimento Regional, que assumiu as atribuições do Ministério das Cidades, informou que o Minha Casa Minha Vida será remodelado, embora não tenha fornecido detalhes a respeito. Na prática, será o fim do projeto que, apesar das críticas, principalmente em relação ao isolamento dos conjuntos habitacionais, ergueu em uma década quase 4 milhões de residências de baixo custo Brasil afora. As alterações aventadas por Brasília vão atingir principalmente a faixa 1. Uma das propostas mais polêmicas é substituir o financiamento à aquisição dos imóveis por um aluguel. O ministro Gustavo Canuto estuda doar terrenos públicos às construtoras. Em troca, as empresas construiriam condomínios em locais afastados, cujos apartamentos seriam alugados por um “valor simbólico”. As famílias só poderiam financiar uma unidade habitacional se comprovassem renda suficiente. A alta inadimplência do programa, afirma Canuto, justificaria a proposta.
O ministério alegou não ter tido tempo para reunir as informações solicitadas por CartaCapital, mas enviou um vídeo no qual Canuto ajusta declarações anteriores. Os beneficiários do programa continuariam a pagar aluguel, mas parte do valor comporia uma poupança. Após um determinado período, o montante poderia ser usado para o financiamento de uma casa própria.
Jair Ferreira, presidente da Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae), vê outro motivo. Segundo ele, a mudança no programa desnuda a intenção do governo de acabar com o subsídio para os mais pobres. A faixa 1 do Minha Casa Minha Vida, explica, nasceu para atacar um problema histórico: 70% do déficit habitacional do País, que atinge cerca de 7 milhões de famílias, concentra-se nos grupos com rendimentos de até 1,8 mil reais por mês. “Cobrar aluguel é uma incoerência, uma falta de respeito com a população. Quem não consegue pagar a parcela também não vai pagar o aluguel. São propostas muito mal elaboradas, que provavelmente estão sendo feitas por provocação.”
O Minha Casa Minha Vida foi criado em 2009 pelo PT e só essa paternidade é suficiente para mover o ímpeto de desmonte de Jair Bolsonaro. Na segunda-feira 17, por exemplo, o presidente foi capaz de vetar a bagagem gratuita em voos nacionais e internacionais só pelo fato de a emenda ter sido proposta por parlamentares petistas. “Se quiser mais de 10 quilos, pague”, bravateou, como se combatesse uma grande injustiça e defendesse os interesses da maioria.
Quando e se sair do papel, o programa habitacional, em seu novo formato, vai se chamar “Casa Brasil”. O Ministério do Desenvolvimento Regional estima enviar o projeto ao Congresso antes do recesso parlamentar e imagina-se que a ideia provavelmente será incluída na barganha pela reforma da Previdência – que convive com a constante ameaça de não ser aprovada ou acabar completamente desfigurada no Congresso.
Justamente entre os grupos com renda inferior a 1,8 mil reais por mês, alvos da proposta, concentra-se 70% do déficit de casa própria
O fim do Minha Casa, acredita Fer-reira, visa enfraquecer a Caixa Econômica Federal, financiadora do programa, e justificar sua futura privatização. “Se você tira o financiamento da Caixa, ele migra para onde? Para o mercado privado. Já tivemos essa experiência antes e é ruim, muita gente perde recursos, além de restringir o financiamento apenas às famílias que conseguem comprovar renda.”
Não só o banco público perde, avalia a urbanista Erminia Maricato. O aluguel social, afirma, seria positivo, mas precisaria ser aplicado de outra maneira. “As pessoas precisam integrar as cidades, não serem jogadas às margens do espaço urbano, onde não chegam transporte, saúde e educação.” A ocupação por famílias carentes de prédios sem função social localizados no centro das cidades, acredita, deveria ser a prioridade do Estado. Doar terrenos para empresas privadas em troca de moradias populares afastadas dos centros é uma política higienista, analisa. “Se você pegar a expectativa de vida de quem mora no fundão de Itaquera é de 59 anos. Ter acesso à cidade muda realidades.”
Maricato e Ferreira lembram que o aumento recente da inadimplência entre os mutuários está ligado à alta do desemprego, em especial entre os trabalhadores mais pobres. “Se alguém não paga os 10% do valor do imóvel, o que você acha que vai acontecer se tiver de arcar com um aluguel? O governo pegou uma ideia, direcionada a famílias de renda maior, e quer colocar em prática para os mais pobres. Não vai funcionar. O déficit habitacional no Brasil só tende a aumentar”, projeta a urbanista.